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Encontros e incômodos no olhar para a juventude: um papo com Jessica Candal

05/02/19 às 16:34 Atualizado em 20/10/19 as 19:52
Encontros e incômodos no olhar para a juventude: um papo com Jessica Candal

O curta-metragem Ainda Ontem, exibido na 22ª Mostra de Tiradentes e também presente na competitiva internacional do tradicional festival francês de Clermont-Ferrand (de 1º a 9/2), marca a estreia de Jessica Candal na direção. A paranaense assinou no ano passado, ao lado de Aly Muritiba, o roteiro de Ferrugem, filme que propõe uma discussão em torno do cyberbullying no universo adolescente. No curta de Jessica, a faixa etária dos personagens é a mesma, mas o retrato é de uma classe social menos abastada e com outros hábitos – a cultura hip-hop, por exemplo, é de central importância.

“O que mais me pega nesse tema da juventude é ser esse momento em que tudo parece que é possível – todos os sonhos, todos os caminhos -, mas ao mesmo tempo os limites vão surgindo conforme você tenta caminhar em alguma direção. Me interesso por esse embate entre o ideal e a realidade”, comenta sobre o interesse em comum por personagens adolescentes nos dois projetos.

Em Ainda Ontem esse embate se dá a partir do personagem Neto (Matheus Moura), um jovem que trabalha em uma tabacaria dentro de um posto de gasolina de beira de estrada. “Achava que (o posto) era até uma metáfora óbvia que falava sobre esse momento de ver as outras pessoas tomando caminhos diferentes e de ter essa dúvida, esse medo, essa incerteza de para qual caminho seguir”, diz a diretora, que conversou com o Cine Festivais durante a 22ª Mostra de Tiradentes.

 

Queria começar perguntando sobre a sua formação e a sua trajetória no cinema até aqui.

Jessica Candal: Eu cursei Audiovisual na USP. Me formei lá em 2007, e logo em seguida voltei pra Curitiba. Nos primeiros cinco anos depois de formada fiquei trabalhando com cinema e educação no colégio em que eu tinha estudado, dando aula para crianças e adolescentes. Depois disso, de uns oito anos pra cá, comecei a trabalhar com roteiro. Então minha trajetória até aqui é mais como roteirista do que como diretora. Nesse meio tempo fiz um média que se chama O Espelho de Ana. Acho que até pelo formato, e por ter uma temática bem autobiográfica, ele não circulou muito por festivais, só entrou em uma ou outra mostra de cinema feminino. E dos roteiros que fiz, aquele que já foi filmado e lançado é o Ferrugem, que escrevi junto com o Aly (Muritiba).

 

Tanto Ferrugem quanto Ainda Ontem retratam personagem adolescentes. Esse é um interesse particular e consciente de você?

Sim, e acho que ele vem justamente da minha passagem da adolescência pra vida adulta, que aconteceu mais ou menos na época da faculdade. Sinto que até hoje tenho questões que estão sendo elaboradas. O Ainda Ontem nasceu a partir de um roteiro de longa que eu escrevi. E foi por conta desse outro roteiro que o Aly me chamou para escrever o Ferrugem.

O que mais me pega nesse tema da juventude é ser esse momento em que tudo parece que é possível – todos os sonhos, todos os caminhos -, mas ao mesmo tempo os limites vão surgindo conforme você tenta caminhar em alguma direção. Me interesso por esse embate entre o ideal e a realidade.

 

Eu vejo Ferrugem como um filme que olha para o tema do cyberbullying e das suas implicações e tenta dar ênfase à responsabilidade masculina. Como foi o processo de escrita do roteiro junto com o Aly Muritiba?

O Aly me chamou porque viu no roteiro do Horizonte um tratamento desse universo adolescente que ele curtiu, e também porque ele queria ter uma interlocução feminina para poder pensar o filme, que tinha dois personagens importantes. Ele falava que não conseguia desenvolver essa parte da Tati, tanto que a primeira versão do roteiro já começava com os desdobramentos do que tinha acontecido, e só depois a gente desenvolveu essa parte dela.

Uma coisa muito forte nas nossas conversas era pensar: “se o filme está questionando e refletindo criticamente sobre essa exposição e apropriação do corpo feminino nas redes sociais, como ele pode falar disso sem fazer a mesma coisa com o corpo dessa personagem? Como contar essa história sem reforçar certos estereótipos?” Acho que uma figura-chave no roteiro, na qual a gente chegou depois de conversar bastante, é a figura da mãe, da Raquel, que nessa segunda parte do filme é quem chega e consegue reorganizar as coisas e responsabilizar os que precisavam ser responsabilizados.

Na primeira versão do roteiro a Raquel era mais uma adulta meio irresponsável e autocentrada, e a gente entendeu que era importante que fosse uma mulher capaz de dar uma resposta a esse universo de responsabilidade masculina. Se uma das mulheres, a Tati acaba sendo vitimada, era importante que tivesse uma outra mulher que pudesse estar empoderada e responder a isso de outra maneira.

 

Queria que você falasse um pouco sobre o estágio do roteiro do seu primeiro longa, se já há alguma previsão para ele ser feito…

O filme se chama Horizonte. A gente ganhou um edital do Fundo Setorial que garante parte do orçamento. Se tudo der certo, captamos o restante neste ano e conseguimos filmar no ano que vem. A ideia é que se passe numa cidade do interior do Paraná, e imagino que no encontro com os jovens dessa cidade algumas coisas vão ser modificadas. Mas a gente ainda nem começou a pesquisa para definir a cidade e a relação que a gente vai estabelecer. A intenção é ter um tempo longo para conhecer essas pessoas, poder fazer essas trocas, e eu acho que aprofundar um pouco o que a gente começou no Ainda Ontem. Poder fazer um filme mais coletivo, que seja uma história de todos que estão fazendo parte do filme.

 

Agora entrando no Ainda Ontem, queria que você falasse um pouco sobre o processo de aproximação com os atores, a partir da distância geracional e da distância de classe/raça. Você até citou no debate que entende a distância dos enquadramentos do filme com relação aos personagens como parte desse distanciamento…

Vendo o filme eu sinto que é mais um incômodo e uma busca por esse encontro do que um encontro mesmo. A busca era essa, que fosse possível um encontro a partir dessa distância. Acho que a distância que mais se fez presente com a galera do filme era a de classe. Eu fico pensando que teria sido importante nesse processo ter um tempo maior de convívio, de conhecimento, para que essa troca pudesse ser mais orgânica.

Acho que essa distância dos enquadramentos nem foi tão racional, ela acaba refletindo um pouco o estado em que eu estava naquele momento. Ainda estava distante daquelas personagens, daquela realidade, então não me sentia muito confortável para chegar mais perto. Tinha essa vontade do encontro, mas sinto que ainda não tinha essa intimidade. Então acho que o filme traz vestígios disso, de um desejo, mas também de um estranhamento.

Agora estou fazendo um outro curta, que por coincidência será um documentário sobre um menino que é do hip-hop. E o caminho do filme tem sido totalmente diferente, muito mais orgânico, mais próximo, em termos de convivência. Pensando também o roteiro e questões formais em conjunto. Acho que talvez daí já surja um encontro um pouco mais íntimo, e essa distância não seja tão incômoda.

 

No debate você disse que os atores do filme foram escolhidos a partir de uma oficina. Queria saber um pouco mais desse processo e do tempo que ele durou.

A gente fez três etapas de oficina. Foram dois finais de semana inteiros, e mais uma semana de ensaio com esse grupo dos atores do filme. E aí depois mais ensaios específicos para o filme. Então ao todo foi um mês e meio de convivência. Eu penso que pelo menos o dobro desse tempo teria sido importante.

Por exemplo, neste outro curta que estou fazendo a gente está há seis meses juntos, e um juntos menos “tal dia a gente se encontra em tal lugar para ensaiar”. É mais uma coisa de trocar mensagem, ele avisa “vai ter uma festa do hip-hop, cola aqui”. No Ainda Ontem era muito mais uma coisa de a gente propor os ensaios e a galera vir. Nesse outro filme estou tentando fazer um outro movimento, menos de chamar e mais de ouvir e ir atrás. De eu ir ao encontro, e não de o outro vir ao meu encontro. Acho que essa tem sido uma tentativa.

E uma outra coisa também é sobre como compartilhar o que acontece com o filme depois. Aqui (na Mostra de Tiradentes), por exemplo, fico pensando que teria sido muito importante que tivesse vindo pelo menos algum dos atores, e na hora foi uma coisa de “ah, eles só convidam o diretor, vou só eu”. E aqui, na mesa anterior, do Tremor Iê, teve uma galera fazendo vaquinha para que pudesse vir mais gente da equipe para cá… São questões que estão surgindo à medida que as coisas vão acontecendo, já com o filme pronto. Então, para o próximo, ou mesmo para os outros festivais em que o Ainda Ontem passar, ficam essas questões, de como compartilhar os frutos do filme, que é nosso; não é justo que os frutos fiquem só pra mim.

 

Além desse seu interesse pelo universo da adolescência, o que mais você acha que a leva a escolher personagens de diferentes gerações, diferentes classes… Está relacionado a uma ideia de alteridade?

Nesse primeiro filme que eu fiz, O Espelho de Ana, tinha uma ideia da câmera como espelho para várias mulheres. Mas na feitura do filme eu fui vendo que era incapaz de falar sobre essas outras mulheres porque ainda tinha muitas questões que eu precisava entender sobre mim, minha relação com minha mãe, avó, amigas… Então o filme acabou sendo sobre a construção dessa identidade feminina a partir desses espelhamentos em mulheres próximas. E eu sinto que depois desse filme parece que rolou um pouco uma exaustão, uma coisa de: “bem, falei um pouco do lugar no mundo em que eu tô”. E aí vem essa necessidade crescente de ir para além dessa bolha, e de olhar e dialogar com outras experiências de mundo, para não fazer apenas filmes meio “umbiguistas”. E desde então acho que estou numa tentativa desse movimento.

Por exemplo, nesse curta que estou fazendo agora, o recorte dado pelo edital era de um filme sobre o centro da cidade. Eu poderia falar da minha galera de 35 anos que frequenta esse bairro, mas não me parecia a coisa importante a ser dita, sendo que eu via que tinha todo um movimento da galera do hip-hop que eu achava muito mais vivo e importante de ser falado do que uma vivência de uma juventude-classe-média-branca da qual eu fazia parte. E de novo eu me vi nessa questão: vou fazer esse filme para falar um pouco mais de mim e dos meus, ou vou tentar fazer esse filme para, de alguma maneira, encontrar com esses outros e poder fazer uma narrativa que seja um pouco mais… relevante? E aí tô tentando seguir esse caminho, mas com todas as contradições que esse movimento gera.

 

O posto de gasolina é um espaço bem importante no Ainda Ontem, e traz uma ideia de passagem, de transição na vida daqueles adolescentes. Queria que você falasse um pouco sobre como você pensou nisso na construção do roteiro e durante as filmagens.

O posto foi uma das primeiras coisas que veio na gênese do roteiro. É bem isso: o posto como lugar de passagem e essa tabacaria onde o Neto trabalha como uma espécie de guarita da onde ele observa essas pessoas que passam. Achava que era até uma metáfora óbvia que falava sobre esse momento de ver as outras pessoas tomando caminhos diferentes e de ter essa dúvida, esse medo, essa incerteza de para qual caminho seguir.

Acho que muito dessa hesitação do personagem é minha, tanto que desde que eu me formei esse é o primeiro curta que eu faço. É muito difícil tomar uma decisão e ir por um caminho. Essa forma de lidar com o mundo, de refletir, conjecturar, fazer pormenores, mas não dar o primeiro passo. De estudar e saber as várias possibilidades de uma viagem, mas não fazê-la. Ainda que seja uma alteridade, esse personagem carrega muito dessa perspectiva, que é muito como eu vivo a vida; esse lugar de muita reflexão e pouca ação. E eu achava que o posto tinha muito essa potência de tornar visual um estado de espírito que é muito subjetivo.

 

No debate você disse que o modo que olhava para a história às vezes trazia um certo fatalismo, e que isso se chocava com o modo como os adolescentes olhavam pras próprias vidas. Queria ouvir um pouco sobre isso, pensando também nas questões dos simbolismos da natureza nos planos que abrem e fecham o filme.

Teve uma versão que a gente fez na qual a cena do começo aparecia no fim do filme. O personagem abotoava o botão da camisa, cruzava um corredor imenso, e aí caía naquela mata e afundava. Isso tinha uma força dramática, tanto que a gente ficou um tempo com essa versão. Então eu fiquei com vontade de conversar com os atores, e muito pelo retorno do Matheus (Moura), que é o personagem principal, entendi que não dava para ser aquela versão. Ainda que funcionasse como filme, não funcionava como ética. Porque ali sim realmente falava “ah, não tem saída, ele vai se afundar, e acabou”. E aí a gente fez a mudança e voltou para essa versão, que já estava no roteiro – ele começava naquele momento de afundar e terminava quando fazia o mergulho. Justamente pra ter essa dicotomia: como se ele começasse meio perdido e se afundando, para num segundo momento ter um mergulho diferente, como se naquele mergulho da cachoeira uma nova história começasse, e talvez coisas que o personagem não fez enquanto a gente o acompanhou nesses 20 minutos do filme ele venha a fazer depois.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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