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Olhar o pai, transcender a matéria: uma conversa com Getúlio Ribeiro

29/01/19 às 18:44 Atualizado em 19/10/19 as 12:02
Olhar o pai, transcender a matéria: uma conversa com Getúlio Ribeiro

Vencedor da Mostra Aurora (seção competitiva para cineastas com até três longas-metragens) na 22ª Mostra de Tiradentes, Vermelha foi filmado, em sua maior parte, dentro da casa do diretor Getúlio Ribeiro, em Goiânia. Isso permitiu um ritmo de produção particular, dividido ao longo de vários meses de 2017, e com cenas adicionais captadas em dezembro de 2018.

“Estar ali dentro de casa, dessa intimidade, com todo esse passado, essa carga temporal, no lugar em que eu cresci, e poder devolver isso em um tempo com intervalos, gravando de boa, é o que permite aproximar realmente do que é a experiência de estar naquela casa, convivendo, sentindo o cotidiano. (…) Tem um lance de se aproximar da experiência de estar vivo ali, e o cinema andar junto com isso”, conta Getúlio.

Com narrativas paralelas, o filme mostra um dia de trabalho e do cotidiano de diferentes personagens. O pai, Gaúcho, reforma o telhado da casa com o amigo Beto, e o cobrador Jonas bate no portão para cobrar dívidas. Paralelamente, dois homens vão até uma fazenda para desenterrar a raiz de uma árvore, que depois será enterrada novamente no quintal da família. Um terceiro núcleo conta com a mãe e a irmã, Diva e Débora. Ao contrário do que acontece em outros filmes brasileiros, porém, o fato de eles serem familiares de Getúlio nunca é explicitado na narrativa.

Em conversa com o Cine Festivais durante a 22ª Mostra de Tiradentes, Getúlio Ribeiro falou sobre as particularidades do processo de criação de Vermelha.

 

Cine Festivais: Na entrevista para o catálogo da Mostra de Tiradentes você conta que se aproximou do cinema a partir de filmes clássicos americanos – policiais, faroestes, etc. Queria que você comparasse esse impulso inicial – quando começou a gostar de cinema, e depois quando efetivamente decidiu fazer faculdade de cinema – com o momento em que você saiu da faculdade, que acho que deve trazer um choque de realidade, no sentido de se perguntar “quais são as possibilidades de eu me sustentar do cinema e fazer meus filmes a partir de agora?”.

Getúlio Ribeiro: Pensando na faculdade (UEG), a primeira coisa foi a criação dos laços para formar o que é uma construção do cinema que eu vou fazer, a galera que eu vou me firmar. Isso é definitivo para marcar como são esses filmes, pela forma como são feitos, com quem eles são feitos, que é a galera que eu conheci na faculdade, o Larry (Machado) e o Tothi (Cardoso), meus parceiros na produtora (Dafuq Filmes).

A partir daí é um processo em que você vai se descobrindo e entendendo qual é a sua forma de lidar com cinema, virando trabalho, virando prática, e como você se coloca nisso tudo. Porque até então era realmente isso que você falou, uma formação que vinha da cinefilia. E aí na faculdade já começa uma coisa territorial, de como, pela maneira que eu sou, me posiciono lá em Goiânia e vou tentar entender aquele lugar que estou filmando.

Então acho que a faculdade foi esse momento de ir formando essas relações, esse tato com o campo de atuação, sabe? Essa coisa de trabalho, de ir para rua filmar. E pouco a pouco isso vai se consolidando, mais ainda com a gente firmando uma produtora e criando uma forma estabelecida de como atuar e entender o que a gente faz.

É uma busca constante também de autoconhecimento, o tempo todo. De se perguntar “o que é trabalhar com cinema hoje?”, “como deve ser isso para cada filme?”, e sempre desenvolvendo essa coisa de uma psicologia desse campo de atuação.

 

O que você chama de psicologia do campo de atuação?

Essa coisa do autoconhecimento mesmo. Um entendimento sobre as necessidades de condução dos filmes. E de como você também vai desenvolvendo seu método. No meu caso são filmes com equipes mais reduzidas. Alguns outros projetos vão ter necessidade de ter mais gente… Mas é como se fosse ir entendendo o que nós somos como profissionais, como autores/realizadores, esse processo de moldagem da coisa. E sempre fazendo uma atualização desse território de trabalho.

 

Você dirigiu quantos curtas antes de fazer o Vermelha?

O Fim de Cada Um foi o primeirão mesmo, na faculdade. Depois teve o Triunfo, que foi bem universitáriozão. Depois veio o Longe de Casa, que foi o primeiro filme feito com mais cuidado. Sabe aquela coisa de exercício de faculdade? Aí ele já foi selecionado para um festival em Goiânia, e tal. Depois teve o O que Aprendi com o Meu Pai. Depois o Enquanto a Família Dorme. E depois o Jonatas. São seis curtas.

 

Algum deles ganhou edital? Como era o modo de produção desses filmes?

O Longe de Casa, que a gente gravou em 2011, era um exercício de faculdade que tinha algumas regras. Precisava ser em uma locação só, com som direto… Algumas coisas assim. Foi gravado numa rodoviária lá no interior de Goiás. Aí esse filme pegou e ganhou um prêmio num festival de Goiânia, que era um prêmio estímulo para filmes universitários. Você recebia R$ 10 mil para fazer outro filme. Com essa grana a gente pagou o O que Aprendi Com Meu Pai, que foi o primeiro curta com uma produção mais complexa, um trabalho mais desenhadão de produção. Tinha muito deslocamento, a gente filmou várias cidades do interior, era filme de estrada. Foi o primeiro filme mais difícil assim, de falar: “agora que estamos desbravando mesmo alguma coisa”. E foi meu trabalho de conclusão de curso também. Deu uma circulada, teve uma repercussão boa nos festivais de lá. Depois teve o Enquanto a Família Dorme, que a gente conseguiu um edital de finalização de curta. Depois veio o Jonatas, que foi o último. Não circulou quase nada, e foi sem grana.

E o Vermelha inicialmente tinha um roteiro de curta-metragem, mas aí o filme foi crescendo, com essa coisa toda de estar lá em casa. Tem um esqueleto de roteiro lá ainda, mas o filme virou outras coisas. O filme foi aprovado em um edital de curtas, mas ele espichou e gravamos ele como longa. Acho que o orçamento total foi R$ 90 mil, R$ 95 mil, uma coisa assim.

 

Mas quando você ganhou esse edital o filme já estava em processo?

Deixa eu lembrar… Tinha umas imagens que eu fazia em casa, mas de maneira mais descompromissada. Boa parte das cenas que tem mais de piração, meu pai cortando uma carne, trocando ideia com o Beto, pegando arroz… Existem muitas imagens de apoio do filme que são desse período. E aí na real nem era uma coisa muito gravada e pensada estrategicamente como peças de um filme. Ainda não era isso. Era gravado porque eu estava pirando de sacar a casa, descobrindo os cômodos. E aí eu já tinha essas imagens.

Quando o filme foi aprovado no edital, acho que a gente tinha parado nessa fase de roteiro de curta, e a partir disso que ele cresceu depois. Acho que foi isso. Não lembro exatamente quando foi esse rompimento, de deixar de ser curta para crescer. Na real eu nunca tive muito apego com o formato do roteiro de curta como uma fita definitiva, foi só uma parada que rolou de inscrever (no edital), e aconteceu… mas sempre teve essa ideia de o filme ser algo maior.

 

Estou te perguntando isso porque eu queria pensar sobre o modo de produção de Vermelha, a respeito dessa coisa de gravar durante um longo período de tempo. A Laura Citarella, diretora e produtora argentina, aponta como os editais tendem a estabelecer uma maneira única de fazer filmes, “de filmar em uma determinada quantidade de semanas e em uma determinada quantidade de tempo”. Queria que você comentasse um pouco sobre isso, comparando o processo de Vermelha com o de algum curta que você teve que gravar em um período mais curto.

Esse esquema de ter o relógio, ter o cronômetro, ter o cronograma, ser uma parada bomba-relógio, ter um tempo definitivo para começar e para terminar, é muito bizarro. Quando é assim você acaba tendo uma relação com um tempo que é o tempo burocrático, de ter um prazo de execução, e não consegue estabelecer uma outra atuação, não consegue se colocar no espaço, no meio, seja lá onde você estiver filmando e desenvolvendo.

Então, no caso do Vermelha, como eu estava em casa, já era um lugar íntimo, o lugar que eu cresci. Tenho toda uma referência de memória daquela casa desde a infância, todas as transformações, cada pedaço da casa. Existe tudo isso como uma bagagem, como um ponto de partida para poder fabular e criar a ficção que o filme é. Estar ali dentro de casa, dentro dessa intimidade, com todo esse passado, essa carga temporal, no lugar em que eu cresci, e poder devolver isso em um tempo com intervalos, gravando de boa, é o que permite aproximar realmente do que é a experiência de estar naquela casa, convivendo, sentindo o cotidiano. Se, por exemplo, eu colocasse um mês de gravação, com quatro semanas e uma folga a cada seis dias, aquilo ali viraria um caos total. Seria outra coisa se fosse imposto. Então tem um lance de se aproximar da experiência de estar vivo ali, e o cinema andar junto com isso.

 

Queria que você especificasse um pouco mais como se desenrolou o cronograma das filmagens.

A gente começou gravando em março, depois teve maio, junho, e teve o grosso mesmo em novembro e dezembro. Nesses primeiros meses que eu falei eram três, quatro dias. Primeiro a gente fez o rolê da raiz sendo extraída, em março; em junho fizemos a raiz sendo enterrada e a briga do meu pai com o Beto… E aí no final do ano a gente gravou todo o grosso do filme: as cenas com a minha mãe, as cenas em que o Jonatas entra no filme, enfim, todo esse rolê aí.

Mas desde o início do ano, quando a gente começou a gravar, já existia uma escaleta do que era o filme até as filmagens que aconteceram em dezembro, tudo isso já estava previsto. A gente só foi gravando assim por conta de um ritmo que a gente estava tendo naquele ano. Não existia uma ansiedade em mirar a data final que teria que ser aquilo.

 

Você falou que já tinha essa escaleta, mas era um negócio rígido no sentido de saber exatamente o rumo que o filme iria tomar, ou isso você foi vendo mais quando foi montando o filme?

Isso foi mudando toda hora, na real. Existia uma escaleta que tentava organizar aquilo tudo, toda aquela galera, criar uma visualidade de tudo isso. Mas a ordem, os dias, o que poderia ser ou não ser, isso foi mudando várias vezes. Eu lembro que a cena da fogueira, por exemplo, eu imaginava ela em algum momento muito específico, e depois eu vi que já não rolava mais e teria que ser outra coisa. E aí ficou para o final do filme.

É estranho como se organizou a ideia de algumas cenas. É como se existisse uma certa intuição narrativa, de onde aquilo ali seria estruturado. Ela faz parte de uma estrutura, tem um tom que é de um ponto específico, mas não existe uma pressão de ter que estar ali. A cena pede um humor, um tempo, um comportamento específico de algum momento, e esse mesmo momento não é forçado; não existe uma pressão de um lugar definitivo e absoluto.

Por isso que eu acho doido: não são cenas que se repetem. Não existe uma repetição de acontecimentos. Cada uma ali tem uma temperatura diferente, um humor diferente, uma calma diferente. Ele não circula tanto. Pode ter alguma coisa de repetitivo no filme, de cíclico, de como as relações voltam, mas ao mesmo tempo cada cena tem uma temperatura que é dela. Tem uma coisa bem intuitiva de que aquilo ali estaria no filme, mas não porque é parte de um bloco narrativo e precisa ser antes ou depois de outra cena. Não tem aquela coisa da engrenagem, de uma coisa colada na outra.

 

Pode citar alguma cena que surgiu durante esse processo?

Pô, eu tenho uma memória ruim, cara. São muitas coisas no filme, tem muita cena que caiu também. Deixa eu lembrar aqui uma que surgiu na hora… A cena em que o Gaúcho solta a Vermelha da corrente e leva ela pra frente do espelho… Foi uma sacação de quando a gente estava gravando: “ah, vamos fazer uma parada aqui!”. Essa foi uma dessas cenas gravadas assim. E automaticamente, a partir daquilo, já tive que linkar com o negócio do Beto. Então, quando o Gaúcho sai ele fala: “Ô, Beto! Já tô subindo aí!”. É como se fosse um “gato” feito no roteiro ali na hora. “Vamos colocar isso aqui porque a gente linka com a cena do telhado que está rolando lá em cima”, sabe?

 

O diretor Getúlio Ribeiro

 

E quando surgiu o título e a centralidade da Vermelha para o filme?

Quando comecei a escrever o roteiro de curta, já tinha esse nome. A Vermelha tem uma coisa misteriosa. É uma cachorra que morava na rua da casa da minha tia lá em Rio Verde. Era uma cachorra de rua. Aí teve uma viagem que meu pai fez para lá, com minha mãe, resolveu colocar a Vermelha no carro na volta e trouxe ela para casa. Ela não era tão filhotinha, quando ela chegou em casa devia ter um ano. Então ela chegou lá e é uma cachorra que passa muita segurança, tem um comportamento muito seguro e próximo de todo mundo da casa. Mas ainda assim ela tem uma seriedade dela. Guarda um mistério, uma coisa assim.

E aí essa figura toda da Vermelha, de ela ter chegado e ser um elemento externo, como virou a cachorra da casa, como aquilo passou a ser território dela, eu acho que é a fita do filme. E Vermelha, o nome, é por uma questão territorial, de aquilo ali ser o espaço dela. Você não precisa ficar afirmando isso no filme. É o espaço dela, quem chega lá ela late. É meio que estabelecer que o território tem um dono, além da família, que é o cachorro, a Vermelha.

 

Você fala uma coisa na entrevista do catálogo que eu acho interessante, um entendimento de que filmar pessoas é uma espécie de “passaporte para acessar o que não é matéria”. Fiquei pensando um pouco nisso, em como que você lidou com essa coisa de filmar pessoas próximas e depois ir para a ilha de montagem e ver essas imagens. Queria que você falasse mais sobre isso, pensando, por exemplo, na força que o rosto do seu pai adquire no filme, pensando nessa ideia de transcender a matéria.

Eu acho que é muito uma coisa assim… tem toda uma conjuntura do que são as etapas que você vai atravessando um rosto. No caso do meu pai, começar com uma parada biológica, os traços do rosto dele. Aí entra todo o histórico que se tem de quem foi esse cara no passado, entra ele como uma peça que está encenando, e já entra em um diálogo direto com toda essa imagem construída dele. Meu pai foi um viajante, a juventude dele traz uma imagem que me instiga um pouco; queria ter uma visualidade dessa juventude, desse passado dele. Hoje já é um cara que está velho, mas quando você passa por essa etapa de atravessar o rosto você começa a entrar em contato com todas essas coisas, começa a ter essa comunicação.

Primeiro o rolê biológico, depois o rolê da idade. Quem já foi esse cara, como é a malandragem dele, como essa malandragem está sendo reencenada. Porque meu pai é um cara malandro naturalmente; os movimentos, a fala, todas essas informações já fogem do que é uma matéria no sentido de ser um símbolo fácil. Estou falando disso principalmente pela relação que eu tenho como filho e pela loucura que é ficar olhando para o seu pai, tentando descobrir alguma coisa a partir disso.

Então é realmente uma maneira de transcender uma fita física, que ao mesmo tempo entra num paradoxo, já que ela só existe porque é superficial. Não é uma espécie de interrogatório que tem que se implantar ali para transcender essa matéria. Não é pela investigação direta, fazendo interrogatório, tipo num documentário mais tradicional. É justamente pela superficialidade de parar e olhar alguns minutos, observar alguns gestos de malandragem, alguma fita comportamental, e isso é suficiente para atravessar essa matéria e criar todo o mosaico do que já foi, do que poderia ser e do que realmente é esse cara.

 

Ao mesmo tempo tem a simbologia que o espectador pode inferir de alguns signos, como a árvore. O filme começa com um plano do céu, depois volta para a árvore, e em seguida tem a coisa da raiz… então é possível buscar uma série de significados para esses elementos. Ao mesmo tempo me vem aquilo que o Ewerton Belico falou no debate, que os “personagens não representam X ou Y”, e o mesmo talvez possa ser dito sobre esses elementos.

Pensando nessa ideia de paradoxo que você colocou, de que a transcendência só existe porque há algo superficial, queria que você comentasse a cena com sua irmã e a sua mãe em que uma delas fala que sabia que o galho da árvore não iria cair, porque o peso do corpo não seria suficiente para isso. Acho que há ali um bom exemplo da dicotomia concretude x simbolismo.

Antes de ser símbolo, as coisas existem por conta própria, elas já têm a presença delas. Sobre o simbologismo, se ele vai por essa via de decifrar, de ser uma coisa meio de charada, acaba criando um certo imaginário que pode desqualificar a existência real daquilo ali como um elemento que está sempre atravessando uma interação geral, como se fosse uma grande comunhão entre todos os seres e elementos. No caso do filme estabelecido pela família, por essa coisa toda. Porque símbolo é tudo também, né? Tudo é símbolo, tudo remete a outras coisas, mas as coisas estão aí, elas existem também.

Volto à ideia de aparência, de ter um respeito por uma aparência. De a aparência poder ser ela, suficientemente ela. E a aparência ser o elemento que você a todo momento está interagindo realmente, verdadeiramente com ela, saca?

 

Você falou no debate que “queria quebrar com uma coisa meio institucionalizada do afeto”. Queria que você comentasse um pouco mais sobre isso, falando também sobre a decisão de nunca enunciar no filme que aquelas pessoas são seus familiares.

Essa coisa do afeto institucional é mais uma necessidade de afirmação, de estar sempre comprovando e afirmando que as coisas são reais, que um amor é real, que um ódio é real; um excesso de tato. E eu acho que (o que o Vermelha faz) é um movimento contrário: pelo escape da ficção, poder patinar, deslizar, com reações que não são diretas, que não afirmam essa coisa do afeto. Que está muito na distância que é o filme mesmo, de como são as coisas.

Beto e Gaúcho nunca pegam na mão, não falam “bom dia”, não falam “oi”. Chega lá, o Beto tá trampando e ninguém olha para a cara dele. Mas você sente que os dois são brothers pra caralho. O mesmo se dá pela distância que é colocada da Débora com meu pai… A Débora e minha mãe são mais próximas mesmo, ali realmente existe um encontro mesmo, um contato que se faz e fica restrito, fica recluso ali, parece que é uma doçura concentrada. Mas, no geral, como o filme se organiza, essa concentração toda não precisa afirmar para ser esparramada, sacou? Para escoar dentro de todo mundo. Por essa energia que é criada e somada nas distâncias, numa negação desse contato, desse afeto, que se cria, eu acho, uma ideia de laço, de estrutura, daquela galera toda que tá no filme.

 

Queria que você falasse um pouco mais do núcleo da sua irmã e da sua mãe. Mais especificamente sobre como você pensou na representação da personagem da sua irmã. No debate eu esperava algumas perguntas que tocassem no tema da representação feminina, mas elas não vieram. Como você pensou isso tanto no momento de filmar como na montagem?

Tanto a minha mãe quanto a Débora, em relação ao Beto e ao Gaúcho, são coadjuvantes do filme, aparecem menos. Isoladamente, o que é o bloco da Débora: ela parte desse contato físico com a minha mãe, tem um rolê no Tinder com um cara lá na praça, que é essa coisa de um contato meio estranho, meio publicitário talvez, de uma superficialidade de Tinder mesmo. E aí se estende até em casa, ela leva o cara pra dentro de casa, e acorda no outro dia com aquela coisa meio que de um reconhecimento, de uma readequação da casa como espaço meio estranho, especialmente para ele, para o cara. Fora isso, ela está sempre atravessando o filme dialogando com meu pai de alguma forma, mas numa distância que é estabelecida por planos mesmo. Ela dialoga com ele, só que em gravidades – no sentido de peso mesmo – que são diferentes.

A personagem dela, no final das contas, não é uma busca por tentar consolidar muito bem o que é a Débora. A ideia nunca foi tentar resolver, tipo “qual é a dessa mina? O que seria uma situação realmente pública de estar fora? O que é a vida pública dela aqui?” É atravessar uma parada familiar de encontros, o que acontece nesses intervalos que são dentro da casa. E toda a imagem mais pública, do que seria uma personagem, não acontece ali dentro. Acho que não é interessante para o filme avançar nisso. Então é mais a presença de uma irmã, que está ali. Os tempos, esses intervalos da vida, que acontecem quando ela está atravessando aquele território ali que é o da casa, esse espaço íntimo. Nunca foi a ideia tentar resolver a minha irmã como uma personagem.

 

Quão consciente você era do tipo de humor que o filme poderia provocar? Como você percebeu isso tanto na construção das cenas quanto na montagem?

Eu reconheço que é um filme que tem umas cenas que são engraçadas mesmo, não tem como… Acho que o ponto alto de humor é a cena da cobrança. Ali vira uma outra coisa, que não é muito firmada na ideia de piada, de um humor muito intencionado. É só uma conjuntura toda que se formou ali que é realmente engraçada. Isso não foi planejado de uma forma muito na risca assim não. A gente sabia que tinha umas cenas que seriam massa de fazer, que seriam divertidas. Tipo, “vou fazer uma cena de briga, vai ser massa”, mas a força chegava quando a galera tava lá e desenrolava na hora.

O Beto aquele dia ali foi sensacional (risos)… Fechou a rua e aquele lugar era dele, estava com o cabo de vassoura na mão, aquilo ali era tudo dele. Não tinha essa. Então a partir desse momento cresce muito essa coisa, de a piada não precisar ficar se afirmando como um dispositivo que está sendo controlador. Ele está no lugar dele e aí era só ir criando essa coisa da montagem, do cinema, de criar uma cena mesmo.

 

Queria falar um pouco coisa dessa experiência aqui em Tiradentes e nos festivais que você frequenta. Pensando nos códigos tanto de quem frequenta festivais e fala nas mesas de debates, quanto nos códigos esperados para os filmes exibidos. Acho que você rompe um pouco com as duas expectativas, tanto pelo filme, quanto por ter um tipo de postura muito tranquila, muito diferente de um certo padrão médio que a gente costuma ver em outras mesas em que cineastas estão falando. Como que você percebe essa experiência? Pensando a inserção do seu cinema nesses espaços e de você mesmo, como pessoa, circulando por esses espaços…

Cara, sempre me incomodou a linguagem, a palavra, o verbo ser um rolê que é essa coisa do acadêmico. Ser um lugar em que você saca que todo mundo conversa formatado no mesmo padrão; “entretanto”, “todavia”, “porém”, um jeito de falar muito organizado. Existir só esse tom, só essa maneira, só isso como preponderante é meio estranho.

Existe algo de opressor nisso. Sendo que na real existem formas de se falar, formas de se desenvolver o raciocínio, formas de desenrolar o que é uma ideia, o que é um papo – falando de Brasil, então, um país desse tamanho, tem um milhão de musicalidades, de jeitos, de tons, de possibilidades de se construir um pensamento. Não necessariamente é esse aí adequado à academia. E é o que predomina.

Então fica parecendo que existe um descompasso do que é realmente toda essa sabedoria, uma coisa do Brasilzão, que está aí e fica mais nas ruas, sacou? Fica em outros lugares e não invade, não consegue chegar e ser tranquilo, ser confortável junto com esse paredão todo que é a boa educação da fala, essa coisa controlada, segura, muito segura, do que é a maneira certa de pensar, de argumentar, de destruir um argumento… acho que é isso.

 

E como isso passa pelo tipo de filme que você faz?

Pode ser que tenha uma relação direta. Teve alguém… Acho que foi o Cássio, um cara lá de Brasília, que me disse que os filmes são iguais mais ou menos ao jeito que a pessoa fala. O filme é meio que uma extensão do jeito dela de falar. Ele falou isso uma vez e eu achei doido, faz sentido.

 

Quem disse isso?

Eu não tenho certeza se foi ele, mas é um conhecido lá de Brasília, chama Cássio Oliveira, acho que foi ele.

 

Pensando um pouco na cena da fogueira, o Beto comenta que a comida na Europa é horrível, aponta uma não-adaptação àquele outro território, que de uma certa maneira é uma afirmação da importância que aquele bairro e que as pessoas mais próximas têm para ele. Queria que você comentasse se isso é uma espécie de proposição do tipo de cinema que você quer fazer.

A ideia nunca foi ser bairrista, afirmar muito “Goiás, Goiás!”. O Beto falando de Rick e Renner, Bruno e Marrone, escapou ali com uma naturalidade fudida. E vira uma defesa do lugar mesmo. “Lá na Europa a gente fazia festa e churrasco, escutando Bruno e Marrone, Rick e Renner”, remetendo àquele lugar, Goiânia, Goiás. Tem uma coisa cabulosa nisso, desse espaço.

Eu acho que não precisa ser pensado pela via publicitária de divulgação, do que é o regionalismo, essas coisas todas. Por exemplo, as músicas que estão no filme estão lá porque são músicas que eu gosto pra caralho, que realmente batem. Tá ali porque eu gosto daquilo e porque remete a um sentimento, antes da estética da própria música. E aí naturalmente essas coisas vão saindo.

 

Você disse que não é uma proposição bairfrista, mas é algo que acaba sendo como uma afirmação natural daquela localidade, daquelas pessoas, daqueles gostos…

Isso, só sai! Escapole, você perde o controle. De como essa energia toda que é o pertencimento a um lugar pega e vai escapulindo. A coisa do sotaque, a música sertaneja atual de lá, que eu gosto… é isso.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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