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“Dirigir para mim não é fazer quadro; é chegar nessa criação junto com os atores”

20/08/18 às 18:14 Atualizado em 11/10/19 as 11:31
“Dirigir para mim não é fazer quadro; é chegar nessa criação junto com os atores”

Dona de uma sólida e premiada carreira em curtas-metragens, com filmes como Uma Primavera, A Mão que Afaga e Estátua!, a cineasta Gabriela Amaral Almeida lançou no ano passado o seu primeiro longa, O Animal Cordial, que está no circuito comercial depois de percorrer festivais desde o ano passado. Em setembro será a vez da estreia do seu segundo longa, A Sombra do Pai, que foi selecionado para a mostra competitiva do 51º Festival de Brasília.

A trama de O Animal Cordial se passa inteiramente dentro de um restaurante de classe média em São Paulo. O estabelecimento é assaltado por dois ladrões armados; o dono, interpretado por Murilo Benício, decide agir para proteger o seu patrimônio e acaba ultrapassando aos poucos os limites da razoabilidade. Quem compartilha o protagonismo com Murilo é a atriz Luciana Paes, que aqui interpreta uma garçonete que estabelece um jogo de atração e repulsa com o patrão.

O Cine Festivais conversou com Gabriela Amaral Almeida a respeito do processo de criação do filme. Na pauta estiveram temas como a relação com o elenco, o processo de escrita e a quebra de convenções de gênero.

 

O personagem do Inácio (Murilo Benício) é essencialmente um revoltado, e no início até conseguimos entender o seu motivo para isso (o restaurante já havia sido assaltado outras vezes, há um sentimento de impotência ali). Acho curioso que um dos movimentos que saiu às ruas pelo impeachment da Dilma se chamava Revoltados Online, e atualmente os revoltados são jovens ricos que compõem parte significativa dos eleitores do candidato de extrema-direita nas eleições presidenciais. Tendo isso em vista, eu gostaria que você tentasse relacionar o Inácio a todo esse contexto sócio-político brasileiro que a gente está vivendo.

O Inácio é um personagem que surge a partir das minhas observações sobre as armadilhas do masculino. Para mim ele é um exemplo de masculinidade em decadência, um homem que foi ensinado a não demonstrar emoção, a ter sucesso, a se comportar de determinada maneira na qual ele é sempre a última voz das coisas. E a gente começa a história pegando esse personagem em flagrante de todas as mentiras que ele viveu uma vida inteira. Essas questões internas de inadequação que esse masculino traz para o Inácio são para mim a fonte principal da movimentação dramatúrgica dele.

Digo isso porque eu acho que se a gente começa a construir um personagem por fora, pela forma como ele se relaciona com o mundo, com o contexto político, a gente acaba dando muita consciência para ele. E isso é ruim tanto para o ator quanto para a narrativa, porque fica panfletário. Então em nenhum momento na minha relação com o Murilo Benício eu usei exemplos contextuais, justamente porque eu não queria que ele criasse de fora para dentro.  Acho que havia um risco de a gente se posicionar contra o Inácio logo no princípio se soubéssemos a maneira como ele se relaciona com esse contexto.

A minha principal preocupação quando eu construo um personagem ou dirijo um ator é fazer com que aquelas questões humanas que são do próprio ator ou que são do próprio personagem no texto sejam o motor principal. Então as fraquezas do Inácio, antes de serem contextuais e políticas, são humanas. Você tem ali na verdade um menino no corpo de um homem, um menino mimado que não sabe perder as coisas, um menino contrariado que não se relaciona bem com mulheres… Ele não se dá bem com a esposa dele, não lida bem com o feminino do Djair [personagem de Irandhir Santos]. Então para mim essa lava emocional do personagem é que o coloca em movimento.

Agora, toda arte é fruto do seu tempo, e quando você coloca o filme em paralelo com o que acontece no cenário brasileiro é inevitável fazer as ligações. Mas eu não queria que ele fosse só isso, porque aí a gente torna o Inácio um personagem partidário, e na minha filosofia o personagem tem direito a ter um segundo olhar. Eu consigo olhar para o Inácio e entender porque ele faz aquilo. Não defendê-lo moralmente, mas consigo entender o que leva ele a fazer aquilo, consigo entender a fraqueza desse personagem, E quando eu coloco uma questão partidária-contextual na frente isso fica mais difícil, porque eu também tenho as minhas convicções políticas, então poderia me voltar contra aquele personagem de uma maneira julgadora, que é uma coisa que eu não busco.

 

Uma coisa que tenho pensado é sobre o papel da preparação de elenco no cinema brasileiro. Sobre isso, um pesquisador chamado Eduardo Bordinhon opina que a figura do preparador de elenco aqui no Brasil surge de um descompasso na relação entre a direção e os atores. Você citou há pouco o modo como lidou com o Murilo Benício durante a construção do personagem dele. Queria ouvir um pouco a respeito do trabalho com os atores ao longo da feitura do filme, já que sei que você participa de todo o processo, ao contrário de outros cineastas.

Acho que toda ficção filmada em cinema é resultado de uma relação. Às vezes você conhece pessoas com quem você se conecta muito rapidamente; em outras vezes as pessoas precisam de um tempo para que essa conexão aconteça. A importância que eu dou a ensaios anteriores à filmagem não é referente a passar ou decorar texto, mas sim à necessidade que eu tenho de criar essa conexão e essa memória.

Eu e o René Guerra preparamos juntos os atores d’O Animal Cordial. Essa preparação consiste em uma série de provocações e laboratórios que têm como objetivo principal criar em pouco tempo uma pequena história daquele personagem no mundo. A gente propõe algumas situações nesse sentido, e eu estou sempre em cena com eles, é uma coisa que gosto de fazer. Não sou atriz, mas jogo com eles o tempo inteiro, porque assim você vai horizontalizando a relação. E assim, quando chega no set, você é parceiro do ator mesmo, não é uma coisa da boca para fora.

O ator é um ser criativo como o diretor, e essa preparação faz com que na hora da filmagem ele esteja ativa e criativamente fazendo, e não reagindo a provocações inconscientes. O ator não está sendo usado como se não tivesse capacidade de chegar sensivelmente ao lugar de um personagem. Então eu sou contra a preparação que aliena o diretor desse processo. Sou contra para mim, né? Comigo nunca funcionaria porque acho que mais uma pessoa nessa equação significa mais distância ainda.

Isso não me permitiria criar essa memória, essa proximidade, e desvendar coisas que você só vai descobrir na interação com o ator sobre a personagem. Porque tem isso: você escreve o roteiro, mas é na interação com o ator que surgem novas questões, que diferentes percepções que surgem a partir dessa troca geram uma terceira coisa.

Por isso não consigo entender esse fenômeno do preparador que aliena. Estou de acordo com o que o Eduardo propõe, que é uma falta de habilidade, uma falta de interesse de entrar na dramaturgia pelos atores. Eu não vejo outra porta de entrada. Para mim o quadro não é uma coisa separada da atuação; ele é o palco da atuação. Se eu não consigo delimitar para um ator qual é o espaço de atuação dele, então não me interessa dirigir. Dirigir para mim não é fazer quadro; é colocar os atores dentro desse espaço, descobrir esse espaço com eles, chegar nessa criação junto com eles.

 

No Brasil esse nome “preparação de elenco” abarca diversos tipos de práticas de trato com os atores, e eu fico me perguntando até que ponto esse nome é adequado. Talvez ele já traga essa ideia de molde do ator, de colocação dele em um espaço que não é necessariamente criativo…

Não é. É um espaço de manipulação.

 

…então talvez a gente tenha que questionar esse nome também.

Perfeito! Eu chamo muito o período em que eu estou com eles de vivência. É um período de vivência em que a gente forma uma trupe, e essa trupe é muito importante para encarar um set. O ator é um ser muito sensível, e o cinema, em contraposição, é muito mecânico, tem muita máquina, muita intervenção, muita cronometragem… Então acho que só se consegue um equilíbrio entre essas duas coisas quando há uma horizontalização [na relação com os atores].

A minha filosofia de preparação é uma filosofia de convivência. A partir daí eu vou entendendo como é que cada um desses atores funciona, percebendo o que cada um deles demanda. Porque as pessoas são diferentes, né? E essa coisa de preparação de elenco coloca todo mundo como se fosse um gado… Não. A preparação/vivência que você tem com uma criança é diferente daquela com um ator que vem de uma experiência de anos no teatro e nunca fez cinema, é diferente daquela de um ator que está fazendo TV por muito tempo, sabe? E cada um tem uma bagagem rica para aportar. Então é isso. Eu considero a melhor parte do trabalho: estar com essas pessoas e descobrir através delas a minha função.

 

A cineasta Gabriela Amaral Almeida

 

Você já contou em outras entrevistas que a ideia inicial para esse filme surgiu de uma ida a um restaurante que havia sido assaltado na semana anterior. O restaurante é um espaço que agrega uma série de possibilidades de trato com relação às tensões sociais brasileiras, mas isso pouco se refletiu em abordagens em filmes nacionais. O único que eu lembro que faz alguma coisa nesse sentido é o Cronicamente Inviável, do Sérgio Bianchi. Queria saber como que você pensou sobre esse espaço durante o processo de escrita do roteiro. Quais foram as possibilidades que ele trazia que mais te interessaram?

Para responder sobre isso eu volto para o lado humano. A partir do momento em que eu me coloco, por exemplo, na pele da Sara, que é uma das primeiras personagens que surgiram, eu vou encontrando dentro do contexto dramático que esse espaço me oferece os tipos de comportamento que ela tem em cada lugar; as aspirações que essa personagem pode ter; as frustrações dentro do funcionamento desse local. Então a gente tem aqui uma garçonete que é subserviente, o que está relacionado ao papel geralmente dado à mulher na sociedade, de servir, de agradar…

Estou tentando fazer um mapinha de criação para você, as coisas não acontecem sempre nessa ordem. Aí vai surgindo o Inácio, que é o chefe dela, depois surge quem ela não quer ser e ao mesmo tempo quem ela é, que é o pessoal da cozinha. Nisso aparece o personagem do Lúcio, que é o garçom, um cara bonito, disponível, mas de uma classe social como a dela, e a Sara não se interessa por ele justamente por isso.

Vão surgindo contradições humanas a partir do momento em que eu me questiono sobre personagens hiper capitalistas, cujos dramas estão ligados à força de trabalho do corpo. É uma questão narrativa contemporânea: se você passa o dia inteiro no trabalho e chega em casa apenas para dormir, então a sua árvore de sentidos está ali naquele espaço. Por isso meu trabalho é tentar entender como essas personagens se relacionam nesse local a partir da chave do humano, e aí vem a questão da imaginação. Como é que você se comporta quando está no salão do restaurante? Como é que você se comporta se está na cozinha? Como é que você se comporta se está sozinho no banheiro? Cada um desses espaços acaba revelando também um lado da psiquê desses personagens. A partir disso você vai puxando fios e criando histórias.

 

Antes da cena do assalto, muito da tensão criada pelo filme está no trabalho de som. É por ele que as compartimentações sociais podem ser percebidas logo de cara, como por exemplo pela diferença da música ambiente no salão e do som de máquinas ouvido na cozinha. Pensando nisso, gostaria que você falasse como que esse trabalho sonoro se deu ao longo do processo.

Desde os meus curtas-metragens eu trabalho com o Daniel Turini, uma pessoa incrível, que eu acho um grande artista porque tem uma compreensão do som que nunca é ilustrativa, e sim de construção dramatúrgica através do som. Ele sempre tem acesso ao meu roteiro antes de ser filmado e possui toda a liberdade do mundo para requisitar essa ou aquela coisa para mim. Quando a gente se encontra para trabalhar, as questões de como esses espaços condicionam o comportamento dos personagens – como você mesmo apontou –, e de como isso se verifica no som, surgem a partir da interpretação que fazemos de cada cena.

Eu acho que esse filme tem uma camada importantíssima no som. E como ele é realizado em uma única locação, se a gente não construísse essas camadas sonoras ficaria chato, sabe? Ficaria tudo plano. Então quando a gente consegue fechar um conceito [sonoro], o filme cresce muito. Você leva um cadáver para costurar na sala de montagem, um Frankenstein, e é no som que você sopra a vida.

 

Entrando no processo de escrita, gostaria de saber como você encara a questão da quebra de convenções, tendo em vista que o filme faz movimentos de aproximação e de distanciamento com todo um padrão estabelecido por filmes de horror, mais particularmente por slashers?

Sabe quando a gente quebra a convenção? Não é a partir do desejo de quebrâ-las, mas de um vontade de compreender, de se colocar no lugar do personagem em uma situação e perguntar: e se acontecesse isso? Assim você quebra a convenção. É uma curiosidade a respeito de personagens que em outra situação, em outro texto, caminhariam para um lugar já previsível, já mapeado. É uma via de tentativa e erro, de experimentação. Não é assim: “ah, vou quebrar a convenção porque quero fazer um filme não convencional”. Acho que o processo criativo não funciona muito desse jeito, pelo menos para mim.

Imaginando a história como uma linha que vai do ponto A ao ponto B, você sabe o começo e o fim; não necessariamente a cena, a situação, mas sabe a que estado você quer levar. Mas se for só isso é muito chato. Então esses desvios – o que chamam de alegoria, de digressão… – é que fazem com que as convenções possam ser quebradas ou possam ser repetidas de uma forma criativa.

 

E quanto o processo de escrita é tensionado pela vivência com os atores?

Como diretora o meu dever é ser uma excelente escritora, porque a escrita é feita de mil camadas; se você para na primeira, vai perder muita coisa. Então para mim a escrita se relaciona muito ao processo de reescrita. O meu roteiro é aberto até certo potno no sentido de que eu preciso fazer com que os meus personagens se apropriem das questões que fazem esse roteiro ficar de pé. O que eu não posso fazer é impor um texto a ser absorvido sem que seja pela raiz, entende? Eu não posso chegar e falar: “leia isso aqui, decore isso aqui”. Agora, se eu consigo fazer com que meus atores entendam de onde vem cada fala, esse roteiro pode ser considerado um roteiro que é inalterável.

E eu reescrevo o tempo inteiro, porque de repente eu vejo a potência da coloquialidade de um ator, a forma de falar de um outro ator e eu incorporo isso. Agora, a estrutura dramática do diálogo é uma coisa que quando eu levo ao ator já está mais ou menos definida. O que é essa estrutura? O que alimenta o diálogo, o subtexto do diálogo, a situação em que acontece o diálogo. Isso é o que faz com que a gente reescreva o roteiro várias vezes, para que as falas e as interações tenham uma raiz que não está no texto.

Você lê um roteiro de cinema em duas horas, mas o bom roteiro é aquele em que cada cena tem um subsolo muito rico. Então eu geralmente vou para os ensaios com esse subsolo muito firme, e o que eu faço não é apresentar o texto, mas fazer com que a gente entenda a matéria que está ali dentro e que quando a gente chegue nos diálogos pense: “claro, não pode ser outra fala”.

 

Leia também:

>>> Crítica do filme, por Thayná Almeida

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