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Foco Polônia esmiúça legado de dois mestres e abre espaço para nova geração

22/10/16 às 12:21 Atualizado em 13/10/19 as 23:05
Foco Polônia esmiúça legado de dois mestres e abre espaço para nova geração

Como uma dessas coincidências trágicas tão presentes em alguns roteiros, o cineasta Andrzej Wajda faleceu um dia após a coletiva de imprensa que anunciou o polonês como homenageado da 40ª Mostra de São Paulo e vencedor do Prêmio Humanidade.

Wajda se foi aos 90 anos, deixando uma vasta obra que teve início nos anos 50. O público da Mostra poderá conferir 17 de seus longas-metragens dentro da programação do evento, que vai até o dia 2 de novembro. A trilogia formada por Geração (1954), Kanal (1956) e Cinzas e Diamantes (1958) e clássicos como O Homem de Mármore (1976) e O Homem de Ferro (1981) são algumas das obras selecionadas.

A homenagem a Wajda faz parte do Foco Polônia, que traça um panorama da cinematografia do país europeu. Dentro deste recorte, outra retrospectiva realizada pela mostra é dedicada a Krzysztof Kieślowski (1941-1996), cineasta mais conhecido no Brasil pela sua obra derradeira, a Trilogia das Cores, formada por A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha.

A seleção, contudo, passou ao largo desses trabalhos, dando ênfase a documentários pouco vistos do início de sua carreira e a outra de suas obras seminais, O Decálogo, série de dez filmes realizada em 1988 para a televisão polonesa. Os títulos, que foram exibidos na época de lançamento durante a 13ª Mostra, serão projetados em cópias digitais restauradas.

Completando o vasto número de obras polonesas exibidas, a 40ª Mostra traz em sua programação 14 filmes contemporâneos vindos daquela localidade, incluindo Todas Essas Noites Sem Dormir, de Michal Marczak, vencedor do prêmio de direção de documentário da seção World Cinema do Festival de Sundance.

Curadora do Foco Polônia, Ela Bittencourt conversou por e-mail com o Cine Festivais sobre as vastas possibilidades oferecidas pela programação.

 

Cine Festivais: Wajda teve uma carreira muito prolífica como cineasta, realizando diversos filmes a cada década. É possível dividir esta trajetória em algumas “fases” delimitadas temática ou esteticamente?

Ela Bittencourt: Wajda passou por várias fases em sua carreira. A primeira é conhecida como a Escola Polonesa. Junto com Andrzej Munk e Jerzy Kawalerowicz, ele era considerado o principal diretor do cinema polonês moderno. Entre as obras-primas dessa época está a sua trilogia da guerra: A Geração, Kanal e Cinzas e Diamantes.

Nos anos 1960, impressionado pelas nouvelles vagues europeias e pelo cinema “underground” americano, Wajda filmou Os Inocentes Charmosos, com um roteiro de um cineasta jovem e ainda relativamente desconhecido, Jerzy Skolimowski. Em Tudo à Venda, um filme auto-referencial, ele refletiu sobre os desafios de ser cineasta, em busca de renovação.

Era uma época difícil na sua vida, depois da trágica morte de Zbigniew Cybulski, um dos protagonistas principais de Kanal e o rebelde de Cinzas e Diamantes, com o qual esperava colaborar. Durante a sua última fase — a do cinema da “inquietude moral”—, Wajda se dedicou aos filmes políticos, entre eles, O Homem de Mármore, O Homem de Ferro e Danton, o primeiro marcado pelo estilo documental e pelo trabalho de arquivo.

Além dessas fases distintas, Wajda filmou muitas adaptações da literatura europeia, principalmente polonesa e russa. Terra Prometida, As Senhoritas de Wilko, Cinzas, Paisagem após a Batalha, Os Possessos e O Casamento mostram sua habilidade em destacar temas relevantes e atuais dos romances clássicos.

Finalmente, Danton, que Wajda filmou na França, em 1981, depois de deixar a Polônia por causa de censura e do estado de emergência, é um dos mais importantes filmes sobre revolução. Não só a francesa do século XVIII, ou a polonesa dos anos 1980, mas a respeito de todos os processos revolucionários. Como o crítico Luiz Zanin descreveu o filme em O Estado de S. Paulo, é “um caso ideal daquele mote que diz que ‘as revoluções devoram seus filhos’”.

 

CF: Kieślowski é mais conhecido no Brasil por A Dupla Vida de Verónique e pela Trilogia das Cores, suas obras derradeiras. Quais são os principais destaques anteriores da carreira do diretor que serão exibidos na Mostra de São Paulo?   

EB: Antes de filmar ficções, Kieślowski teve uma carreira muito bem-sucedida como diretor de documentários. O seu primeiro trabalho do tipo, Da Cidade de Łódź, é essencial para quem quer entender a trajetória do documentário polonês. Por um lado, é uma homenagem ao mestre do cinema documental do período pós-guerra, Kazimierz Karabasz (Musicantes, sua obra-prima, foi premiado em Oberhausen em 1961). Por outro lado, Kieślowski exibe um humor negro e uma visão humanista que marcarão a sua carreira posterior.

O Ponto de Vista de um Porteiro Noturno é imperdível para os fãs do cinema híbrido — uma narrativa construída em volta de uma personagem, que remete muito à ficção.

Também é preciso lembrar que, no começo da sua carreira, Kieślowski era um diretor politicamente engajado. Curriculum Vitae, um outro exemplo do cinema híbrido e talvez um dos seus filmes mais ousados, é uma vivissecção do regime comunista, particularmente do Partido Comunista e do conformismo que exigia.

O formato do filme é enganador – podemos acreditar que estamos acompanhando um julgamento real de um membro do Partido. Mas, de fato, Kieślowski juntou muitas histórias e, sobre elas, escreveu um roteiro ficcional. Não se trata de uma biografia, porém. O protagonista do filme foi expulso do Partido na sua vida real, mas não da mesma maneira que vemos no filme. Kieślowski pediu para ele atuar, e encenou sua confrontação com o Comitê Central verdadeiro. É quase uma psicoterapia social, um equivalente do que Wajda fez para os poloneses com suas ficções políticas, como O Homem de Mármore.

O estado de emergência na Polônia, em 1981, foi uma grande decepção para Kieślowski, algo que o impulsionou para se distanciar da política e filmar uma série mais universal, O Decálogo. Esse último é uma introdução essencial para os filmes posteriores, como A Dupla Vida de Véronique. O Decálogo 6, por exemplo, introduz o tema da duplicação, o conceito de que a psique humana é infinitamente misteriosa e fluida. O outro tema que permanece no seu trabalho é que arte e vida são incompatíveis: a primeira demanda esforço demais e, por fim, prejudica a segunda. Esse tema central de Véronique já está presente no Decálogo 9.

A profunda preocupação de Kieślowski com a lei — não tanto no sentido institucional quanto com a dimensão ética do nosso dia a dia — é tema presente em A Liberdade é Azul e A Fraternidade é Vermelha, mas na verdade já aparece no Decálogo 5. Podemos dizer o mesmo da ideia de acaso, introduzida nos episódios 1 e 5 do Decálogo, e retomada nos filmes derradeiros. O que realmente distingue seus últimos filmes é a passagem de Kieślowski do cinema documental, com sua estética áspera, ao cinema lírico, mais pitoresco, ou barroco.

 

CF: Tanto Wajda quanto Kieślowski estudaram cinema em Lodz. O que tornou esta cidade especialmente atraente para cineastas?

EB: Sem dúvida, Łódź é uma cidade singular, não só na história do cinema polonês, mas na história do país, em geral. Enquanto Varsóvia, que tinha sido totalmente queimada e bombardeada durante a Segunda Guerra, estava sendo reconstruída no final dos anos 1940, Łódź continuava devastada. A sua paisagem cicatrizada pela guerra e sua população, pobre e desesperada. Cineastas, como Grzegorz Królikiewicz, Wojciech Wiszniewski, e Krzysztof Kieślowski, foram naturalmente impactados pela miséria que os cercava.

Kazimierz Karabasz, que ensinava na Escola em Łódź e era mentor de Kieślowski, foi um dos principais cineastas do movimento “black series,” ou “série preta”, do cinema documental, que expôs condições de trabalho e moradias terríveis. A “série preta” tratava de alcoolismo, falta de emprego e prostituição, temas tabu na Polônia sob regime comunista.

Além disso, alguns cineastas, como Kieślowski, registraram Łódź em suas fotografias. O que fascinava Kieślowski eram principalmente rostos. Inúmeros retratos de crianças e de pessoas idosas povoam as imagens que ele tirou durante o seu mestrado na Escola. Graças a essas imagens, podemos ver como a cidade — com seu ambiente absurdo e áspero— estimulou a sua imaginação.

Algumas imagens de Kieślowski, que estudou artes visuais no colégio e se formou em Teatro, são bastante abstratas, mostrando a sua preferência pelas situações misteriosas. O desejo de retratar o inexplicável inspirou suas famosas obras posteriores, como A Dupla Vida de Véronique.

Apesar de recursos modestos, a Escola em Łódź agregava professores e cineastas renomados, e proporcionava aos cineastas jovens uma relativa liberdade. Enquanto a maioria dos filmes estrangeiros, produzida fora do Bloco Soviético, não podia ser exibida em cinemas, a Escola mostrava esses filmes sem muitas restrições. Dessa forma, ser um aluno em Łódź, mesmo sendo na Polônia isolada e pobre, significava ter acesso às riquezas do cinema mundial.

 

CF: Nos últimos anos, muito devido ao Instituto Polonês de Cinema, os filmes poloneses têm obtido espaço e reconhecimento em grandes festivais e premiações. Quais são os destaques entre os filmes contemporâneos que serão exibidos pela Mostra de São Paulo?

EB: Com certeza, sem o Instituto Polonês de Cinema, ou sua parceria com o Adam Mickiewicz Institute, não seria possível trazer mais de 50 filmes poloneses ao Brasil. O Instituto Polonês de Cinema não só apoia o desenvolvimento de roteiros e financia novas produções, mas também promove a cinematografia polonesa fora do país, através de retrospectivas e colaborações com instituições e festivais internacionais do maior destaque, como a Mostra de São Paulo.

Os filmes contemporâneos, que compõem o Foco Polônia, dialogam com os clássicos de Wajda e de Kieślowski de uma maneira bastante ampla. Há inflexões da Escola Polonesa de cinema nos filmes históricos, como Solstício de Verão e Noite de Celebração. Há preocupações éticas no cinema de Tomasz Wasilewski, cujo Estados Unidos pelo Amor passará na Mostra, e até no cinema pós-moderno de Kuba Czekaj, com Baby Bump.

Michał Marczak, com seus filmes híbridos, continua uma forte tradição do cinema polonês focada em personagens, ao invés de conceitos. Todas Essas Noites Sem Dormir, pelo qual Marczak ganhou o prêmio de Melhor Diretor de Documentário da seção World Cinema do festival Sundance neste ano, compartilha com os filmes de Kieślowski o desejo de “um olhar profundo, ao invés de largo”, procurando pequenas epifanias na realidade corriqueira, ou banal.

O espirito do novo e da aventura, evidenciado por esses filmes, era querido a Wajda: o “pai” do cinema moderno polonês acreditava que era possível ser poeta com uma câmera digital na mão, da mesma forma, ou até mais, do que trabalhando com película.

 

Serviço

Debate “O Cinema da inquietação Moral – De Wajda a Kieślowski”, dentro da programação da 40ª Mostra de São Paulo

Mesa de debate sobre Andrzej Wajda e entrega do Prêmio Humanidade. Presença do crítico polonês Tadeusz Lubeski e do brasileiro Luiz Carlos Merten. Mediação: Ela Bittencourt. Falado em polonês, haverá tradução.

Data: 26 de outubro, às 19h

Local: Espaço Itaú de Cinema – Augusta 1 (Rua Augusta, 1475 – Cerqueira César – São Paulo – SP)

Entrada gratuita, ingressos distribuídos com uma hora de antecedência.

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