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Ficcionalizando o presente e o passado: uma conversa com Tomás von der Osten

10/09/19 às 13:37 Atualizado em 12/10/20 as 18:37
Ficcionalizando o presente e o passado: uma conversa com Tomás von der Osten

Exibido na seção Pardi di Domani no último Festival de Locarno, ocorrido em agosto, o curta-metragem Chão de Rua é a incursão mais narrativa dentro da filmografia do paranaense Tomás von der Osten. O enredo gira em torno da relação de Alberto (Santos Chagas), um trabalhador da construção civil, com a sua irmã Valéria (Ma Ry), que retorna inesperadamente e precisa de um lugar para passar a noite.

A intenção era que o filme transparecesse questões políticas contemporâneas, mas não de um modo frontal. “Tem uma certa ideia do momento em que estamos, a questão da mentira, das narrativas, mas queria colocar isso dentro de uma ficção. Fiquei pensando muito no conceito de camadas, sobretudo nas ficções que a gente constrói para transformar a realidade, seja a nossa própria, seja a do mundo”, explicou o cineasta em entrevista ao Cine Festivais.

A experiência de Tomás no audiovisual é marcada por trabalhos como montador em filmes de Nathália Tereza (A Outra Margem e A Casa Sem Separação), Leonardo Mouramateus (História de uma Pena) e Fernando Severo (Euller Miller – Entre Dois Mundos), entre outros. Na direção, o seu próximo projeto é o longa-metragem Continente, uma ficção histórica ambientada na década de 30.

Cine Festivais: A ideia de uma limitação da visão e/ou da escuta, podendo estar associada tanto aos personagens quanto ao espectador, é comum aos seus curtas-metragens. Em Miragem isso acontece com relação a um som propagado a certa distância; em Vó Maria os enquadramentos recortados se relacionam com a memória dos personagens a respeito de uma pessoa; e em Nem a Mim, Nem a Ti as nuvens parecem estar sempre escondendo algo que o olhar não alcança. Você vê relação disso com o processo do Chão de Rua?

Tomás von der Osten: Eu costumo ter um início de processo muito mais formalista, e depois o filme vai brotando. Tem um pensamento do (Jean) Renoir que eu gosto muito, de começar com uma ideia fundamental e depois ir crescendo a história. Nesse sentido, isso que você falou é algo que me interessa muito: criar uma certa disjunção entre o que a gente vê e o que a gente escuta. É uma coisa que aparece nos filmes que já fiz e nos meus futuros projetos.

No meu trabalho como montador acho interessante criar uma tensão a partir do não visto, tanto com o que está escondido dentro da narrativa, mas sobretudo com o que está escondido do quadro, o que está oculto. O Chão de Rua nasce muito disso; é um filme que vai falar sobre mentiras, sobre camadas, sobre o que está soterrado.

A respeito dessa “ideia fundamental” sobre a qual o Renoir falava, você consegue identificá-la no caso do Chão de Rua?

Eu cresci no norte de Curitiba, em um lugar com ruas de terra batida, e recentemente a rua da casa onde eu cresci foi asfaltada. Esse fato pequeno me fez pensar em tudo que eu vivi ali – isso no campo pessoal. E num campo um pouco mais abstrato eu queria pensar um filme político em que a questão política não fosse tão frontal. Tem uma certa ideia do momento em que estamos, a questão da mentira, das narrativas, mas queria colocar isso dentro de uma ficção. Fiquei pensando muito no conceito de camadas, sobretudo nas ficções que a gente constrói para transformar a realidade, seja a nossa própria, seja a do mundo.

Queria que você falasse o quão importante foi para você pensar na apresentação de cada personagem. Na primeira cena do Alberto (Santos Chagas) há um muro que está se rompendo e uma rachadura que está exposta; na primeira cena da Valéria (Ma Ry) a gente não sabe direito se ela está falando no celular; e na primeira cena da Célia (Patricia Saravy) também há uma apresentação bem peculiar, com o uso de uma iluminação mais fantasiosa…

Tinha uma vontade de trabalhar em um entre-lugar. Na primeira cena você não sabe se aquilo é uma ruína ou se é uma construção; na segunda cena você não sabe se ela está no telefone ou se está conversando com alguém. Tem também a questão das máscaras que vão se formando e se desfazendo enquanto o filme vai avançando. De não se saber o que é verdade e o que é mentira, mas sobretudo de se pensar a própria mentira enquanto uma verdade.

A apresentação da Valéria tem uma coisa que foi até acidental, mas que eu gosto muito: filmamos em pleno centro de Curitiba, na hora do rush, mas do jeito que a gente aproximou a câmera dela, com aquela luz, o fundo parece um chroma key. Eu achei aquilo maravilhoso. Ao mesmo tempo que é algo direto, o resultado parece uma coisa falsa, e isso me interessa bastante enquanto apresentação desse universo das personagens.

Minha intenção era que a Valéria fosse muito mais verdadeira enquanto uma pessoa que está mentindo, que sempre conta histórias. Já o Alberto é um personagem que transmite um aspecto moral, mas que no fundo mantém suas máscaras e carrega todos esses passados soterrados, todas essas camadas.

Nesse sentido das máscaras, é curioso como o Alberto parece desmascarar a Valéria na cena do bar, refutando a ideia de que ela teria vindo para prestar um exame, mas numa cena posterior ele mesmo fala “vai dormir, que amanhã você tem que acordar cedo pra fazer o exame”…

A ideia é justamente trabalhar com a indefinição. Não é um filme que conduz o espectador para uma certa verdade. É o contrário: ele vai conduzindo para a própria indefinição de uma verdade. Ao final do filme não existe o que de tudo isso era verdade e o que não era. A ideia de uma verdade e de uma mentira entra em curto-circuito; essa era a nossa vontade.

Você trabalhou como montador em filmes da Nathália Tereza como A Outra Margem e A Casa sem Separação, que têm a música como elemento bem importante, inclusive em termos de construção atmosférica. Como você relaciona essa experiência com o uso da música em Chão de Rua?

Admiro muito o trabalho da Nathália, ela é uma das minhas maiores influências. Eu nunca tinha pensando diretamente em como isso se relaciona com o Chão de Rua… O processo do filme foi muito coletivo, todo mundo agregou alguma coisa. Na hora de filmar o roteiro estava muito fechado, mas durante as reuniões prévias muita coisa foi surgindo, e uma delas foi a música. Agora já não consigo lembrar muito bem como foi, mas essa questão tanto das fitas quanto da música, que parece meio central no filme, foi algo que só surgiu nas conversas com a equipe, numa versão mais avançada do roteiro. A música também entra em um lugar bem pessoal; eu cresci ouvindo música caipira, meu pai ouve muito Milionário e José Rico… E dentro do roteiro ela penetra no imaginário dos personagens, pensando no que a mãe costumava ouvir na rádio.

O que eu tinha na cabeça desde cedo era essa imagem deles dois juntos. O filme trabalha com a câmera muito próxima dos personagens, e eu queria que houvesse um momento em que ela se afastasse e a gente visse ambos em quadro pela primeira vez.

Pensando de um modo mais geral na sua experiência como montador em outros projetos e nos seus trabalhos, como você acha que ela teve influência na visão de cinema que você trouxe para o Chão de Rua?

Como eu trabalho muito com montagem, eu sei como uma visão nova pode agregar. Então eu chamei o Pedro Giongo para montar, e foi um processo de muito aprendizado. É o primeiro filme que dirijo em que não faço a montagem, e talvez por ser também o primeiro mais narrativo eu cheguei com o filme muito pronto na cabeça. Inclusive lembro de um momento muito marcante em que o montador chegou pra mim e pediu mais opções de montagem. Acho que isso foi interessante, porque ele fez coisas que eu não faria e que acho que ficaram muito melhores do que no meu pensamento inicial. Mas em geral o filme foi muito montado já na decupagem. É algo que não sei se é bom ou ruim, não sei se é uma herança de um pensamento de montagem que tenho. Mas até mesmo escrevendo o roteiro eu costumo já ir pensando a montagem dos filmes.

É meio hitchockiano isso, né?

Bastante! Acho que tem muita influência sim. Até aparece uma escada em espiral em um momento… (risos)

Você fez mestrado sob orientação da Susana de Sousa Dias (48), que é uma cineasta portuguesa que tem um trabalho muito interessante de trato com imagens de arquivo. Queria que você contasse um pouco dessa experiência e falasse como ela se relaciona com seus próximos projetos.

Eu fiz esse mestrado em Lisboa com o tema “ficcionalizar o passado”, pensando no problema da mentira ou da ficção quando se trata de acontecimentos históricos. Foi um projeto teórico, mas também uma base para um projeto de longa-metragem (Continente) que é uma ficção histórica.

Nos anos 30 existiu um garimpo nos Campos Gerais do Paraná, e o roteiro do filme está situado nesse contexto. São pessoas que vieram em busca de riqueza e depois descobriram que os diamantes se esgotaram rapidamente. O protagonista é um menino que cresce no meio dessa escassez, desse mundo rude. É um filme sobre crescimento que tem uma trama meio McGuffin, como o Hitchcock falava, sobre o roubo de um diamante.

O projeto foi desenvolvido dentro de um núcleo criativo de uma produtora daqui de Curitiba, a Sto Lat, e agora a gente acabou de enviá-lo para um edital estadual. Tivemos alguns consultores dentro do núcleo criativo, entre eles a Lucrecia Martel e o Karim Aïnouz. O Karim me falou uma coisa que me fascinou muito, que é: “o filme parece que ocorre no passado, mas também pode se passar num futuro distópico”.

É um filme que vai falar muito sobre máscaras novamente. Talvez tenha a ver com John Carpenter, no sentido de não se saber em quem confiar. Há um interesse grande meu em buscar uma certa relação política, mas em um filme abertamente ficcional. É uma investigação que eu estou realizando agora, seguindo por um caminho de filmes mais narrativos, comparados aos primeiros filmes que eu realizei sozinho.

Lembro também que nas consultorias a Lucrecia (Martel) levantou a questão de como seria preciso buscar uma fala própria daquele tempo – foi bem curioso porque ela estava finalizando o Zama quando a gente teve essa conversa. E para mim interessa justamente o contrário: ver as pessoas daquela região, colocar o presente em conflito com o passado, ouvir os sons de hoje, deixar o presente permear esse filme.

Isso vem também dessa ideia da indefinição que eu falei sobre o Chão de Rua. Eu brinco que é um conceito de Ilusionismo Realista, ou um Chamado Ilusionista, em vez de Chamado Realista [tema da 21ª Mostra de Tiradentes, em 2018] (risos).

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