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“Ver americanos como Homer Simpsons é mais prejudicial a nós do que a eles”

09/09/17 às 11:38 Atualizado em 20/11/19 as 15:03
“Ver americanos como Homer Simpsons é mais prejudicial a nós do que a eles”

Uma curiosa crença de moradores locais na ideia de que o famoso cineasta Steven Spielberg morou em Afogados da Ingazeira (PE) nos anos 60, supostamente fugindo do alistamento para a Guerra do Vietnã, serviu como motivação inicial para a pesquisa que viria a resultar algum tempo depois no documentário Em Nome da América, dirigido por Fernando Weller, que teve sua estreia na mostra competitiva do VIII CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira.

A partir desse gancho inicial – que não aparece no último corte do filme –, Weller mapeou um grupo de jovens americanos que vieram ao Brasil como voluntários da agência governamental Corpos da Paz nos anos 1960 e 1970. Uma parte dessas pessoas realmente tinha a intenção de escapar do conflito no Vietnã. Muitas outras, contudo, acreditavam que poderiam trazer algum tipo de transformação social à região Nordeste, afinadas com um discurso de luta contra a fome e a pobreza propagado pelo presidente John Kennedy.

Acontece que o contexto político tanto do Brasil, que enfrentava uma Ditadura Militar, quanto do mundo, imerso na Guerra Fria, trazia outras motivações para o incentivo ao voluntariado. É isso que a ampla pesquisa realizada pelo filme busca mostrar, chegando inclusive a investigar a infiltração da CIA (agência de inteligência americana) no Nordeste brasileiro com o intuito de evitar que dali pudesse surgir uma “nova Cuba”, advinda da luta das Ligas Camponesas.

Fernando Weller tem mestrado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sempre com estudos sobre documentário. Na entrevista a seguir, concedida em Cachoeira (BA), ele fala sobre o processo de realização do filme.

 

Cine Festivais: Na história do documentário há diversos modos de se pensar a relação entre entrevistador e entrevistado, ainda mais quando essa relação envolve algum tipo de repulsa às ideias de algum entrevistado. Como você pensou essa questão no processo de realização de Em Nome da América?

Fernando Weller: Nos meus estudos acabei pesquisando um tipo de cinema justamente oposto ao da ideia da entrevista, que é o Cinema Direto, especialmente o cinema observacional americano. Meu interesse por documentário começa em 1999, quando assisti a Santo Forte, do Eduardo Coutinho. Nunca me afastei desse modelo de cinema, é a referência de documentário que eu carrego, e nele a questão da entrevista é fundamental.

Gosto do entendimento da entrevista como lugar de criação de relações, de um encontro a partir do qual as identidades possam ser construídas durante a conversa. A ideia de enquadrar o outro a priori é totalmente o avesso desse tipo de cinema que o Coutinho promove.

 

Conheço uma frase atribuída ao Coutinho que diz o seguinte: “eu não faço acordo com o público às costas dos meus personagens”. De que maneira você acha que ela se encaixa no seu modo de pensar este filme?

Não conhecia essa frase, mas é uma frase boa. Acho que uma questão fundamental no documentário é o acesso. A grande dificuldade do documentário é ultrapassar camadas que vão se colocando diante de você com relação a determinada pessoa ou a determinado assunto. Para mim todo documentário é esse processo de vencer camadas, e uma dessas camadas é o enquadramento prévio que muitas vezes o público faz em relação àquilo que você vai filmar.

No caso dos americanos isso é muito claro. Existe um grande estereótipo do que é o americano médio e uma certa resistência em aceitar que um filme vá ouvir e dar voz a essas pessoas. Parte-se do princípio de que eles são o império, que eles já têm voz, e as coisas não são bem assim.

Acho que o filme demonstra que esse estereótipo dos americanos como um bando de Homer Simpsons – que absolutamente ignoram a realidade do mundo – é mais prejudicial a nós do que a eles. Se eu partisse de um estereótipo na relação com essas pessoas, eu jamais conseguiria acessar o entendimento que eles têm de nós.

 

Você contou no debate a história sobre Steven Spielberg ter vivido no Brasil. Como isso serviu de ponto de partida para o processo do filme?

Em Recife, em 2008, conheci uma pessoa natural de Afogados da Ingazeira (PE) que dizia que Steven Spielberg tinha morado ali, vindo fugido da Guerra do Vietnã. Consegui uma foto desse Steven – que eles diziam que era Spielberg – com um morador local e fui a Afogados perguntar se elas se lembravam dele. Essas foram as informações iniciais que eu tinha. Foi uma espécie  de dispositivo que eu criei no início da pesquisa para poder construir uma linha narrativa. Era curiosa essa pesquisa porque ninguém sabia nada sobre ele. Eu ia de casa em casa coletando não informações.

Aí muito rapidamente comecei a acessar esses fóruns da internet que reuniam ex-voluntários dos Corpos da Paz, no começo para procurar esse Steven. Acabei descobrindo quem ele era, até encontrei o túmulo em que está enterrado nos EUA, mas tomei outro caminho na pesquisa. A gente entrou em contato com mais de 100 pessoas que vieram ao Brasil nesse programa, fizemos um mapeamento dessa geração que veio nos anos 60 e começamos a fazer as entrevistas.

Durante a montagem, percebi que a história do Steven não montava com esse contexto politico que o filme tinha. O que aconteceu no Brasil de 2013 para cá foi fundamental para eu fazer uma opção pelo tipo de filme que acabou aparecendo no corte final, mais sóbrio, mais político, com uma tentativa de explicar determinado contexto, porque eu acho que agora é necessário. A história do Steven pode aparecer em outro momento, em outro filme.

 

Em algum momento você pensou em utilizar a pesquisa para fazer outra coisa, que não um filme?

A verdade é que qualquer pesquisa cabe em qualquer meio. A gente aprovou a distribuição do filme agora, e a ideia é produzir um livro a partir dos vários documentos que foram levantados e não couberam no filme. A proposta é continuar esse trabalho a partir de outro meio, que seria o livro. Mas a rigor eu não acho que haja muita diferença entre filmes e livros, no sentido de que eles podem trabalhar pela mesma coisa.

Algumas pessoas pensam que determinados temas não são cinematográficos, e eu acho isso um preconceito terrível, sabe. É rebaixar o cinema a uma condição não reflexiva. É possível desenvolver o pensamento pelo cinema da mesma forma que pela literatura. Claro que as linguagens são diferentes, mas assim, se você disser que alguma coisa não é cinematográfica, no fim das contas você está dizendo que não pode filmar determinadas coisas, que o cinema tem um limite para abordar determinados assuntos ou temas, e eu não acredito nisso. Acho que o cinema não tem esse limite.

 

Por que não há mais informações sobre o processo do filme em tela? Você pensou em colocar nele essa busca que realizou nos fóruns de voluntários?

Acho que a minha presença no filme existe, além dos momentos de voz off, através da ideia de uma mesa em que documentos, nomes e siglas vão circulando, passando as informações da pesquisa. Só que eu penso que talvez exista um excesso de autorrepresentação no documentário contemporâneo, algo que funciona para determinados projetos, mas que para outros é um fator que dispersa e que pode parecer exibicionismo.

Acho que não cabia a minha presença como personagem do filme, e sim como alguém que articulou essas informações e tentou organizar elas. Não acho que o filme ganharia alguma coisa com a minha presença afetiva dentro dele. Seria um elemento que tiraria o foco das questões que estão sendo colocadas e o colocaria ele sobre mim.

 

Já em um dos momentos finais do filme, há um plano em um bar no qual é mostrado um cartaz de Lula e Dilma. Por que você optou por manter esse plano no corte final?

Aquilo foi filmado logo após a eleição da Dilma. Acho que essa sequência final tem o sentido de demonstrar uma certa continuidade dos conflitos sociais no     Brasil – esses mesmos conflitos que supostamente os americanos atuaram para amenizar nos anos 60. Então as figuras de Dilma e Lula ali são emblemáticas, talvez um pouco melancólicas, de uma certa esperança perdida que está pregada numa porta.

Fiquei sabendo depois que aquela comunidade que está retratada no final foi desocupada logo depois que a gente filmou, então de fato aquele momento tem para mim um sentido muito amargo, de que todas essas articulações no final das contas deixaram como legado a permanência dessas estruturas reacionárias da sociedade brasileira.

 

Como foi o trato com as imagens de arquivo, no sentido de encontrar intenções que não estavam postas no momento em que aqueles materiais foram realizados?

Quando a gente começa a observar as imagens de arquivo, passamos a perceber que, embora sejam datadas, elas não têm e nunca vão ter um sentido fechado. Mesmo na época em que foram feitas elas eram ambíguas, contraditórias, tinham múltiplas leituras.

Pesquisei filmes feitos pelos Corpos da Paz no mundo todo, e cada produção é diferente. O filme feito no Brasil aborda de forma muito amena essa presença americana, tenta estimular a boa vontade dos voluntários em treinamento. Já o trabalho colombiano é o contrário, era um filme de encomenda que foi absolutamente desvirtuado, no bom sentido, ao longo das filmagens, mostrando as contradições daquele processo. E esses filmes tinham status diferentes dentro dos arquivos. O filme colombiano estava sumido, engavetado, foi um trabalho louco para chegar a ele.

É muito interessante acessar esses arquivos porque fazer isso é também entender um pouco das próprias contradições e conflitos internos da instituição (Corpos da Paz), porque foi ela mesma quem produziu essas imagens, e muitas vezes elas fogem ao controle daquilo que se pretendia com elas, vão por outro caminho.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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