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“Colocamos no filme nossa raiva, nosso desespero”: uma conversa sobre Tinta Bruta

01/11/18 às 17:36 Atualizado em 20/10/19 as 20:14
“Colocamos no filme nossa raiva, nosso desespero”: uma conversa sobre Tinta Bruta

Os gaúchos Felipe Matzembacher e Marcio Reolon estrearam na direção de longas-metragens com Beira-Mar, filme lançado em 2015 que trazia, nas palavras de Felipe, “uma tentativa de quebrar com algumas lógicas de filmes coming of age envolvendo personagens LGBTs”. Em Tinta Bruta, segundo longa assinado pela dupla, os dilemas do protagonista refletem um outro momento do País e da vida dos cineastas.

Pedro (Shico Menegat) deixa a faculdade após passar a responder a um processo criminal. Sozinho depois que a irmã se muda de cidade, ele tenta se sustentar a partir de performances em que dança, coberto de tinta neon, para milhares de estranhos que o assistem pela webcam. É nesse universo da internet que encontra Léo (Bruno Fernandes), com quem estabelece uma parceria profissional que aos poucos se torna afetiva.

“Com o Tinta Bruta havia essas histórias de despedidas de amigos nossos que deixaram Porto Alegre, e no meio do processo fomos atravessados pelo caos que tomou o Brasil, por essa perseguição desses grupos sociais… Então a gente queria realmente que isso se refletisse na tela. Colocamos no filme nossa raiva, nosso desespero”, comenta Felipe.

O filme teve estreia mundial em fevereiro, no Festival de Berlim, de onde saiu com o prêmio Teddy, concedido para produções que abordam temáticas LGBT. A estreia brasileira se deu na 42ª Mostra de São Paulo, e foi na capital paulista que os diretores conversaram com o Cine Festivais sobre o novo trabalho, que terá estreia comercial no próximo dia 6 de dezembro, pela Vitrine Filmes.

 

Cine Festivais: No Tinta Bruta há um desejo constante por deixar Porto Alegre, que é vista como um “purgatório”, como diz uma personagem do filme. Gostaria de saber se essa visão também faz parte da relação de vocês com a cidade e como isso interfere no processo criativo.

Filipe Matzembacher: Sempre que começamos a desenvolver um projeto a gente pensa no lugar em que aquele personagem está inserido, e quase sempre esse espaço também é um personagem. No Beira-Mar a praia era um ambiente bem importante para a gente, e no Tinta Bruta eu acho que a cidade é realmente um personagem, muitas vezes até uma antagonista para o Pedro.

Porto Alegre é a cidade onde a gente nasceu e cresceu, e queremos seguir fazendo cinema lá. Nos últimos anos, porém, o que era uma cidade progressista e acolhedora, que parecia à frente do seu tempo em determinadas questões durante nossa infância e adolescência, foi ficando menos humana e mais hostil para determinados grupos sociais. A rua deixou de ser um espaço público de fato, as pessoas começaram a se trancar em suas casas, e, com todo esse somatório, muita gente começou a querer ir embora. É verdade que é uma tendência a juventude das cidades de médio porte acabarem indo para cidades maiores, mas acho que esse contexto intensificou esse movimento.

Marcio Reolon: Pela forma como a gente constrói as nossas histórias, elas tendem a ter traços muito pessoais. No Tinta Bruta buscamos retratar como a nossa geração se sente em relação à cidade neste momento. Na escrita do roteiro nos demos conta de que, dos nossos dez amigos mais próximos, seis ou sete não moravam mais em Porto Alegre, então tentamos trazer para o filme esse sentimento de abandono, de ver as pessoas partindo e ter que lidar com as memórias daqueles que não estão mais lá.

 

Tem algumas cenas em que essa relação hostil das pessoas com a cidade é mostrada e ilustrada por diálogos. Vejo isso na cena em que o Pedro olha para o paredão de prédios vizinhos e conversa sobre a infância com a irmã, e também em uma cena mais à frente, em que a amiga do Léo está prestes a sair da cidade…

FM: Desde o início a gente tinha muito interesse em pensar como a cidade olha para as pessoas que moram nela, especialmente com relação ao nosso protagonista. Durante a pesquisa para o roteiro encontramos um estudo que mostrava que Porto Alegre era – não sei se ainda é – a capital da América do Sul com mais imóveis vagos ou abandonados. Acho que isso ilustra um pouco o motivo de as pessoas começarem a sentir a cidade como uma espécie de fantasma, e a gente quis trazer esse tom para o filme, com os personagens reagindo a isso.

MR: E nas conversas da juventude porto-alegrense esse desejo por sair da cidade é realmente um tópico recorrente. As pessoas ficam incomodadas com a falta de oportunidades, ou não se sentem bem encaixadas naquele espaço.

 

Sobre as cenas em que aparecem silhuetas de pessoas observando pela janela, queria saber como elas surgiram no processo de escrita e de que modo se relacionam com a experiência de vocês na cidade?

MR: O Pedro é um personagem que tem quase uma fobia de sair na rua, de as pessoas olharem para ele. Acho que quando uma pessoa não se enquadra dentro da norma ela tende a receber mais olhares, e muitas vezes você não sabe o motivo daqueles olhares, né? Se são olhares hostis, se são olhares de curiosidade, ou, às vezes, até olhares amigáveis. Isso acaba gerando um desconforto que o Pedro carrega com ele. É um cara que se sente observado o tempo todo. Quando sai na rua, tem pessoas olhando para ele. Quando está em casa, tem milhares de pessoas assistindo ele pela webcam. E isso acontece também nessas cenas das janelas. Buscamos conceber aquelas pessoas quase como avatares anônimos de computador. Elas estão sempre olhando, mas ao mesmo tempo há uma incomunicabilidade.

FM: Acho que a hostilidade se dá de duas maneiras: tem a agressão direta, que acontece na cena da briga, e tem a indiferença, a coisa de não estender a mão. No momento em que o Pedro é agredido as pessoas não oferecem ajuda, até fecham a janela. A gente queria olhar para essa cidade que está tão presa nos seus apartamentos que às vezes se esquece de quem está ali na rua.

 

Já que vocês falaram sobre a cena da briga, gostaria de fazer uma questão referente a ela. Tentando fazer um paralelo com outro grupo contra-hegemônico, vejo muito fortemente entre os negros a difusão de uma ideia de que não é mais interessante reproduzir imagens de corpos de pessoas negras ensanguentados, violentados. Trazendo essa discussão para os LGBTs, naquela cena da briga vocês não mostram os personagens sangrando, e eu acho que as feridas são amenizadas na cena posterior, o que poderia até provocar uma discussão sobre verossimilhança. Então eu queria saber se havia esse pensamento de evitar mostrar certas imagens de violência com relação aos personagens.

MR: Eu pessoalmente não acho as feridas sutis. Essa até foi uma discussão que a gente teve, e o nosso medo era passar um pouco do ponto. Porque não chega a ser uma briga em que eles são espancados, né?

Mas uma coisa que foi importante para a gente era não retratar graficamente a violência. Nisso eu concordo com o que você disse. E uma coisa importante para a gente era não retratar um ataque homofóbico. O motivo que aqueles dois rapazes batem nele não é homofobia. É quase uma vingança por ele ter reagido ao colega, por ele ter furado o olho de um dos amigos deles. Tanto que a gente teve a preocupação de não fazer eles falarem ou xingarem o Pedro com palavras homofóbicas, tipo “ah, viado”.

FM: O Pedro sofre uma opressão sistêmica homofóbica durante toda a vida, em especial durante a faculdade, pelo que a gente acaba descobrindo no filme. E um dia ele reage a isso, o que desemboca em mais violências, e ele tem que ficar lidando com essas reações.

Eu concordo que a gente está um pouco cansado dessas imagens que você colocou, mas isso ocorre também porque a gente não tem representações de reatividade, de personagens LGBTs dispostos a reagir. Isso de certa forma é um posicionamento e é uma coisa que a gente queria com o Pedro, que é um personagem reativo.

Acho que a gente tem que seguir falando de todas essas violências contra minorias, porque elas existem, mas também é uma questão da maneira como ela é narrada, né? Eu acho que essa consciência de se perceber como vítima, mas de reagir a isso, é um ponto que a gente queria muito trabalhar. E a jornada do filme é muito essa: ele começa fragilizado por causa da consequência da reação dele, vai para uma fossa, mas o final a gente enxerga até como algo otimista. Muitos filmes retratam a violência contra LGBTs como o clímax, mas a gente estava muito mais interessado em ver as consequências dessa reação.

 

Tem uma cena em que vocês mostram uma parede cheia de fotos na casa do Léo. São imagens que vão de encontro a um processo histórico de negação daquelas identidades. Queria que vocês comentassem sobre isso, pensando também na importância estética que vocês dão às imagens pixelizadas – lembrando dos frames em que o Pedro e o Léo aparecem como se fosse em uma sequência fotográfica.

FM: Acho que o Léo é um personagem que também sofre diversas opressões, só que a diferença para o Pedro é que ele tem uma rede de afetos (os amigos, o grupo de dança, a irmã). Já o Pedro vai percebendo aos poucos como é importante sair de um enclausuramento.

Falando sobre a textura das imagens, a relação dos dois começa no pixel, com as performances que eles fazem como GarotoNeon e Guri25 na webcam. Aos poucos eles vão se aproximando e criando um afeto de fato na vida material, e não na virtual. Para a gente era interessante essa transição, até porque num primeiro momento o Pedro só tinha a intenção de tentar conseguir mais viewers para suas performances.

Aquele momento dos frames que você falou vem logo depois da briga deles. Nossa intenção era recapturar aquele relacionamento, e como o início de tudo foi gravado pela webcam, de alguma maneira aquilo ficou eternizado naquelas imagens.

MR: E essa textura da imagem da webcam se relaciona muito ao conceito de memória, de lembrança. É mais uma coisa que faz parte daquele contexto.

 

Ontem no debate um de vocês falou que o neon destaca o Pedro de uma “normatividade cinza”. Dentro do cinema queer a ruptura com a heteronormatividade sempre é uma questão. Queria saber se vocês acham o Beira-Mar um filme mais normativo do que o Tinta Bruta.

FM: Não sei se normativo seria a palavra. Acho que também tem muito a ver com o que os filmes pesquisam e procuram. Com o Beira-Mar a gente estava fazendo uma pesquisa muito ligada à adolescência e a um sentimento de estar perdido, sem chão. A intenção era falar sobre a passagem para a vida adulta, e o filme termina justamente com o rito do personagem entrando no mar. De certa forma ali também é um purgatório, o tempo é dilatado, os meninos vivem uma eterna espera…

Já o Tinta Bruta é um filme mais bruto mesmo, é protagonizado por um personagem reativo. O Pedro tem que entrar em choque com o que está ao redor dele de uma maneira mais evidente, mais marcada. É, inclusive, uma maneira de se relacionar com a própria sexualidade. Já que isso é podado dele nos espaços da rua, da faculdade, das festas, ele cria o personagem do GarotoNeon para poder lidar com essa ausência de uma outra forma.

 

Ainda pensando nessa questão da normatividade, queria saber se vocês têm uma preocupação de filmar as performances, o sexo e o afeto de uma maneira que não reproduza uma estética heteronormativa já estabelecida.

FM: A gente sempre tenta aproximar os nossos processos do teatro. Existe um roteiro bem estabelecido, mas sempre estamos abertos a mudanças durante o processo, e isso inclui essas questões sobre corpo, sexo, o que interessa mostrar, o que não interessa mostrar. Tudo é muito discutido entre nós, a equipe e o elenco. E como a gente consome muito cinema queer, passamos a ter uma bagagem de como esses corpos costumam ser filmados e percebemos o que pode ser interessante ou não. Tentamos balancear essas duas coisas.

 

Pode dar um exemplo de uma cena que ilustre isso que você falou?

FM: A gente pensa muito no sexo com relação ao que ele representa no roteiro. Por isso a primeira cena de sexo entre o Pedro e o Léo teria que ser bem longa, com extremo afeto, muito tomada pelo toque, pelo olhar. Já a cena de sexo do Pedro com o rapaz que vai tentar extorquir ele teria que ser muito mais bruta, porque essa relação de afeto não existe ali.

 

Vocês vêm do teatro, que é um espaço em que a pesquisa sobre modos de atuação é uma constante. Queria saber mais sobre o processo de vocês com os atores no Tinta Bruta.

MR: Muitas vezes pensamos nos personagens antes de desenvolver a história propriamente dita, e algo que sempre discutimos é o olhar que eles têm. Tentamos encontrar a forma como ele olha em algum momento chave da história, seja um momento de desespero, de raiva, de felicidade… É isso que vai nos guiar na condução com os atores. Nossa narrativa tende a ser muito guiada pela forma como um personagem olha para o outro ou para as coisas ao redor. Por isso a gente trabalha muito com closes nos nossos filmes; no Beira-Mar mais ainda do que nesse, mas no Tinta Bruta também tem muitos planos fechados. Os momentos em que vemos aqueles rostos gigantes na tela, em que o olhar do ator está ali e você consegue se jogar ali dentro, são aqueles em que a gente, como espectadores, consegue sentir que aquele personagem está vivo na tela; é aí que conseguimos nos ver dentro deles também. A nossa condução de atuação sai muito dessa ideia.

FM: No set de filmagem o processo com o ator segue sendo o elemento-chave para nós. A gente sempre brinca que não aceita que o fotógrafo tenha três horas para montar a luz e que o ator tenha que estar pronto em apenas cinco minutos. Se o ator precisar de uma hora para se preparar, ele vai ter. Também fazemos questão de fazermos um número de takes necessários para que todo mundo possa sair satisfeito, tanto eu e o Marcio quanto os atores.

MR: Em geral as pessoas que trabalham com a gente sempre comentam que os nossos sets são silenciosos, e eu acho que isso tem a ver com esse processo íntimo com a equipe e o elenco. A gente sempre busca preservar os atores para que eles possam estar concentrados, à vontade. Isso faz com que a gente também prefira sempre equipes um pouco mais reduzidas, dentro do possível, para não gerar aquele ambiente de set que pode ser opressivo para um ator, ainda mais se ele for iniciante.

 

O Tinta Bruta tem algumas cenas de festas, e imagino que seja um desafio concebê-las, visto que há o risco de reproduzir certos clichês de filmes brasileiros contemporâneos. Gostaria de saber como vocês pensaram essas sequências.

FM: Acho que filmar festas é sempre desafiador, antes de tudo porque tem muita gente ali no ambiente da filmagem. A cena é tomada por uma energia que vai ser dada pela música, isso influencia bastante. Para mim sempre é um estudo do que é aquela festa no filme, do que ela está representando para o personagem.

Dou o exemplo da festa que acontece na rua. O Pedro a princípio está meio deslumbrado com os amigos do Léo, olha para eles dançando… Mas aos poucos começa a se lembrar de tudo que tinha acontecido, se incomoda com os olhares ao redor. Então o jeito que a gente filma aquela festa tem que refletir isso, sabe?

MR: E as três festas do filme são festas de despedida: a despedida da irmã, a despedida da colega do grupo de dança e a despedida do Léo. As festas se encaixam dentro dessa lógica de partidas que o filme tem; há uma celebração, mas junto disso também está presente uma certa tristeza.

FM: São tons diferentes. Na primeira festa o Pedro está com uma certa raiva da despedida da irmã, e isso contagia um pouco o modo como a gente filmou. A segunda tem aquilo que eu falei, começa no deslumbramento e acaba com o personagem acuado. E a última festa já vem com o peso de um adeus que talvez seja o adeus mais pesado do filme, porque é a relação que a gente mais presenciou…

MR: Mas que termina com um tom de celebração, eu acho.

 

Vocês disseram os seus filmes sempre estão pouco relacionados com o espaço em que vocês vivem e com o momento da vida de vocês e a realidade do País. Qual vocês acham que vai ser o tom do próximo filme, tendo em vista nosso momento atual?

MR: A gente ainda não tem uma definição concreta do que iremos fazer a seguir. Não consigo te responder isso de uma forma muito concreta ou palpável agora.

FM: Eu acho que a gente é muito atravessado pelo momento político e social. Beira-Mar fala da passagem para a vida adulta, e a gente era super jovem quando gravamos. Havia naquele momento uma tentativa de quebrar com algumas lógicas de filmes coming of age envolvendo personagens LGBTs. Com o Tinta Bruta havia essas histórias de despedidas, e no meio do processo fomos atravessados pelo caos que tomou o Brasil, por essa perseguição desses grupos sociais, então a gente queria realmente que isso se refletisse no filme. Colocamos no filme nossa raiva, nosso desespero. Então eu acho que o próximo filme vai reagir ao momento que a gente está vivendo de uma maneira ou de outra. Sempre é um combustível para nos sentirmos mais conectados com a história que estamos filmando.

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