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O Brasil não trata bem da sua memória, diz diretor de Depois da Chuva

15/01/15 às 17:15 Atualizado em 13/10/19 as 23:27
O Brasil não trata bem da sua memória, diz diretor de Depois da Chuva

Embora seja um momento central para a formação da Nova República e da democracia que se prolonga até os dias de hoje, o período que abrange a campanha pelas eleições diretas para presidente, a eleição indireta de Tancredo Neves e a posse de José Sarney não costuma ser explorado pelos cineastas brasileiros. Esta lacuna temporal é preenchida por Depois da Chuva, filme dos baianos Cláudio Marques e Marília Hughes que chegou nesta quinta-feira (15) aos cinemas brasileiros.

“O fato de o cinema tratar majoritariamente da fase mais violenta da Ditadura torna a coisa muitas vezes romantizada, pois ali é mais fácil eleger mocinhos e bandidos. No processo de transição as coisas foram confusas. Os livros de História mostram essa fase como algo bacana, mas ela também foi muito amarga, porque o processo que a população gostaria não aconteceu, o resultado foi muito diferente do almejado”, opina Cláudio Marques, em entrevista ao Cine Festivais.

Depois de ganhar três prêmios (ator, roteiro e trilha sonora) no Festival de Brasília de 2013, o filme percorreu vários festivais nacionais e internacionais, incluindo o prestigiado Festival de Roterdã (Holanda). Ele conta a história de Caio (Pedro Maia), um garoto que vive o despertar político e sexual nos anos 80. A história é ficcional, mas tem inspiração autobiográfica, uma vez que o diretor Cláudio Marques viveu a sua fase de adolescência nessa mesma época.

Cláudio conversou com o Cine Festivais a respeito da abordagem política que o filme faz sobre o país e sobre outros assuntos ligados ao seu primeiro longa-metragem. Leia a entrevista a seguir.

 

Cine Festivais: Você pensou na história do filme como uma alegoria sobre o presente do país?

Cláudio Marques: Eu era adolescente nos anos 80 e vivi esse momento de transição política no Brasil. O meu despertar político e amoroso coincidiu com essa fase. Eu contava minhas experiências para a Marília (Hughes, codiretora de Depois da Chuva) e dizia como me impressionava como esse momento formador de nossa história ficou um tanto quanto apagado. O cinema brasileiro produziu muitos filmes sobre a Ditadura em si, mas se falou muito pouco sobre o período de redemocratização, que é formador para o Brasil em que a gente vive.

Foi a Marília que entendeu que essa história poderia resultar no nosso primeiro longa-metragem. Partimos de uma inspiração inicial autobiográfica e fomos criando elementos para essa história ficcional. Naquele momento a gente pensava muito sobre como que o público iria pensar ao se deparar com esse ponto de vista um tanto amargo sobre o processo de transição, porque a narrativa respeita os acontecimentos da época, mostra um período inicial de grande euforia e termina com o Sarney assumindo a presidência e a Nova República sendo comandada pelas mesmas pessoas fundamentais para a sustentação da Ditadura.

E a gente entendeu finalmente em 2013 (com as manifestações de junho) que aquele anseio por democracia no Brasil, a discussão das alianças, da formação da democracia, não era uma questão exclusivamente nossa. Então eu acho que o filme dialoga fortemente com o presente por captar uma demanda por participação e transparência de uma maneira geral no poder político do Brasil.

 

CF: Vista no período da redemocratização, a sensação de euforia seguida por um desapontamento profundo também pode ser encontrada no momento pós-manifestações de junho de 2013, pois, apesar daqueles acontecimentos, as eleições não trouxeram grandes mudanças e até mesmo fortaleceram uma bancada conservadora no Congresso Nacional. Você enxerga uma espécie de movimento circular em nossa história?

CM: Eu lembro que teve um depoimento que marcou muito a gente, de um russo que assistiu ao Depois da Chuva no Festival de Roterdã. Ele disse que ficou muito emocionado com o filme porque identificou nele a mesma atmosfera que viveu nos anos 80 durante o processo da Glasnost e da Perestroika. Até mesmo a música experimental de nosso trabalho o remeteu à Rússia daquele período.

Então essa sensação circular não se restringe ao Brasil. A Primavera Árabe, que começou com uma alegria tão grande em vários países, está recrudescendo em ditaduras ferrenhas na maior parte dos lugares. Realmente, há alguma coisa a se pensar sobre esses movimentos populares de grande força em determinado momento que acabam de alguma maneira perdendo essa potência e são dominados por alguns pequenos organismos que já estavam no poder. E isso tudo resulta em experiências muito frustrantes na maioria das vezes.

 

>>> Leia também: Crítica sobre o filme Depois da Chuva

 

CF: O filme me pareceu um comentário sobre o funcionamento do sistema político brasileiro, em especial ao fisiologismo que tem como principal expoente o PMDB. Era essa a intenção?

CM: Essa é um pouco a ideia do filme. Tem aquele personagem que chamamos carinhosamente de Ribamar para homenagem o Sarney, que é um menino que está sempre do lado do poder e troca de aliados de uma maneira muito tranquila. Por outro lado, a perda do purismo e a morte das grandes ideologias é simbolizada pelo Tales, que faz o amigo do protagonista.

Tentamos mostrar essa estrutura de poder que é, no mínimo, muito confusa. A gente vê hoje o PT aliado a figuras que a militância execra, como a Kátia Abreu (nova ministra da Agricultura), o Maluf… O Sarney está saindo agora depois de mais de 50 anos no poder. É um sistema de perpetuação das mesmas pessoas no poder, e o filme também fala sobre isso.

 

CF: Recentemente foi entregue o relatório final da Comissão Nacional de Verdade, que tratou de crimes cometidos pelo Estado no período da Ditadura. Contudo, em relação a outros países sul-americanos, o Brasil é o que menos se debruçou sobre os abusos desse período. Você sente uma dificuldade em lidarmos com a nossa memória? O filme é uma tentativa nesse sentido?

CM: É muito difícil trabalhar com memória no Brasil. É difícil ter acesso aos arquivos e é muito caro também. Eu acho que deveria ser absolutamente o contrário, a gente deveria ter o caminho facilitado para encontrar os registros históricos, os arquivos, as imagens de televisão, as fotografias, para que o tempo todo a gente consiga tecer novos pontos de vista sobre o que aconteceu. O Brasil é um país que não trata bem da sua memória. A gente tenta esconder por debaixo do tapete as coisas ruins do passado e seguir adiante como se nada tivesse acontecido.

O fato de o cinema tratar majoritariamente da fase mais violenta da Ditadura torna a coisa muitas vezes romantizada, pois ali é mais fácil eleger mocinhos e bandidos. No processo de transição as coisas foram confusas. Os livros de História mostram essa fase como algo bacana, mas ela também foi muito amarga, porque o processo que a população gostaria não aconteceu, o resultado foi muito diferente do almejado.

Acho que tem uma complexidade para se tratar desse período que o cinema brasileiro talvez tenha se furtado um tempo de se debruçar. Mas é muito importante que tenham outros filmes que falem sobre esse momento histórico. É um processo que se iniciou em 1984 e a gente pode dizer que ainda não terminou.

 

CF: A representação da Bahia sem os estereótipos comumente associados ao estado por moradores de outros lugares do país era uma preocupação para vocês?

CM: Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a gente tem uma ligação forte com a capoeira, o candomblé e a cultura afrodescendente, mas não podemos ser reduzidos apenas a essa representação do senso comum. Foi natural pensar a história e entender que o tom do registro seria outro, fugindo dessa coisa redundante e dos estereótipos.

É engraçado pois, nas exibições que fizemos fora do Brasil, muitas vezes as primeiras perguntas das pessoas em debates comentavam sobre um certo estranhamento de ver um filme brasileiro e não ouvir samba, não ver pessoas extremamente alegres, de biquíni na praia. O mesmo preconceito que o resto do Brasil tem com a Bahia existe do resto do mundo com relação ao Brasil.

É muito importante para nós, artistas, que a gente traga outros olhares sobre a nossa realidade. Acho que o Depois da Chuva pode ser muito importante para abrir uma porteira nesse sentido, por mostrar a Bahia de uma outra maneira e talvez dar um desejo nas pessoas daqui de se olharem e se representarem de formas diferentes também.

 

CF: Como foi a trajetória do filme em festivais e qual é a expectativa para o lançamento comercial?

CM: Para nós era muito importante colocar o filme no Festival de Brasília, que tem uma história com grandes cineastas como Rogério Sganzerla, Carlão Reichenbach e Joaquim Pedro de Andrade. Conseguimos ser selecionados para o evento em 2013 e ganhamos três prêmios, incluindo o de melhor ator para o Pedro Maia.

Em termos internacionais, a meta era sermos selecionados para um dos cinco principais festivais da Europa, e conseguimos estrear em Roterdã. Passamos o filme em vários festivais dos EUA, na Argentina, na Turquia, no Chile e em outros países. O importante para quem está fazendo cinema brasileiro de autor é que a gente está conseguindo internacionalizar nossos trabalhos, que é uma coisa que havia sido conquistada nos anos 60 com o Cinema Novo e que aos poucos foi sendo perdida.

Acho que o Depois da Chuva mais do que cumpriu com as expectativas que a gente tinha estabelecido, e agora vem o circuito comercial, que é uma incógnita. Eu penso que o filme pode interessar ao público jovem e a pessoas mais velhas que têm essa memória afetiva do processo político e também das descobertas da adolescência.

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