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Documentário evita moralismo para retratar preso em regime semiaberto

23/02/17 às 19:13 Atualizado em 13/10/19 as 23:02
Documentário evita moralismo para retratar preso em regime semiaberto

Lançado na Mostra Aurora, seção competitiva de longas-metragens da 20ª Mostra de Tiradentes, poucos dias depois do massacre ocorrido em um presídio de Manaus – episódio que foi seguido por ocorrências semelhantes em outros estados e escancarou a crise judiciária-prisional que o País vive há muito tempo -, o documentário Corpo Delito, dirigido pelo estreante Pedro Rocha, provoca reflexões sobre este cenário turbulento, muito embora não tenha uma pretensão totalizante no sentido de lançar teses sobre o sistema como um todo.

O filme acompanha a vida de Ivan, morador de Fortaleza que cumpre regime semiaberto apoiado na exigência do uso de uma tornozeleira eletrônica. Acontece que o aparato tecnológico gera uma inquietação permanente nele, que também não demonstra boa aderência ao trabalho monótono que lhe é oferecido em uma fábrica de tomadas.

Jornalista de formação, Pedro Rocha tinha como projeto inicial para sua estreia cinematográfica um roteiro de um filme-ensaio que utilizaria fotografias criminais do século XIX. Aprovado no edital de documentários Histórias que Ficam, o trabalho mudou radicalmente de rumo a partir dos conselhos de tutores como o diretor Marcelo Gomes e da entrada no projeto do roteirista Diego Hoefel.

No vídeo a seguir é possível assistir à entrevista que o Cine Festivais realizou com o cineasta no dia seguinte à exibição de Corpo Delito na 20ª Mostra de Tiradentes. Aqui Pedro Rocha fala sobre sua trajetória, a respeito do processo criativo do longa-metragem e das questões estéticas e políticas que o filme levanta.

Se preferir ler o que o cineasta disse, transcrevemos abaixo os principais pontos da conversa.  

 

 

Trajetória

Venho de uma faculdade de comunicação, passei um tempo em redação como repórter cultural e depois fui integrante do Coletivo Nigéria, que funciona como um coletivo de mídia livre e ao mesmo tempo é uma produtora. Eu já trazia há um bom tempo essa vontade de trabalhar a linguagem de não ficção, aproximando o jornalismo da literatura e da antropologia, mas sempre havia uma precariedade de tempo e de infraestrutura, e eu acabava sempre saindo frustrado das minhas produções.

Aí escrevi esse projeto do Corpo Delito, que acabou sendo aprovado no edital Histórias que Ficam (destinado a documentários autorais). Ele me possibilitou uma série de laboratórios – desenvolvimento e roteiro, montagem e distribuição. Nesse primeiro impacto do laboratório de roteiro o primeiro argumento do filme foi bem desconstruído, o filme saiu em frangalhos; foi o meu primeiro contato de frente com a linguagem do cinema.

Depois disso, por sugestão do Marcelo Gomes, que foi um dos consultores do filme, procurei o Diego Hoefel, e o trabalho com ele me fez ir sacando o que estava em jogo na produção de imagem cinematográfica, foi um choque com a linguagem. Apesar de eu já ter uma abertura vinda da literatura e da poesia, era algo ainda muito superficial, e pude encontrar um campo muito aberto no cinema. Ao contrário do jornalismo, onde você encontra vários interditos e tem várias outras questões normalmente mais importantes do que a linguagem e a estética, o cinema encoraja que você se embrenhe nesse processo de reflexão e de produção da imagem.

 

Pesquisa

Encontrei com o Diego Hoefel e comecei a trabalhar com ele o filme em maio de 2015. Tentamos resolvê-lo como filme-ensaio, que era o previsto no argumento original – trabalhar com imagens de arquivo de fotografias criminais do século XIX. Acabamos encontrando uma série de dificuldades que acabavam fazendo com que o argumento ficasse até desinteressante pra gente. Ao mesmo tempo, o Diego achava que aquele projeto inicial seria um filme para falar com os pares, para falar com gente que já concordaria com a gente; não que esses filmes não devam ser feitos, inclusive tenho vontade de fazer esse filme-ensaio ainda, mas aquele não parecia ser o momento.

Começou a crescer na gente uma vontade de estar um pouco mais em conflito, de o filme estar numa área que se comunicasse com mais pessoas, e aí o Diego veio com a ideia de fazer um filme com personagens, que girasse em torno desse lance da segurança pública e da cultura de violência no País. A gente desenhou quatro perfis de personagens fictícios e foi atrás de encontra-los. Um desses perfis era de um apenado em regime semi-aberto sob monitoração eletrônica. Essa é uma provocação que parte da experiência de roteirista de ficção do Diego, que anteviu que poderia existir um conflito interessante ali.

Fomos então conhecer a Fábrica Escola, um espaço que recebe regressos do regime penitenciário para tentar algum tipo de ressocialização. Aplicamos questionários em alguns desses regressos, chegamos a fazer uma entrevista filmada, e acabamos reduzindo a busca para três pessoas: Cícero, Franklin e Ivan. Depois que fizemos o teste de câmera decidimos filmar o Ivan. Foram sete meses procurando os personagens e ao mesmo tempo amadurecendo a ideia do filme.

 

Distância diretor-personagem

Acho que a gente assume que existem distanciamentos entre equipe e personagens/atores do filme. Não quis apagar esse distanciamento entre equipe e personagens, tentando meio que respeitar as relações de poder que estão envolvidas ali sem assumi-las como um dado insuperável.

Ao mesmo tempo a gente propõe uma dramaturgia relacionada a uma intimidade do Ivan, tem uma tentativa de gerar uma identificação entre público e protagonista. A dramaturgia foi importante em todo o processo; a história de ele ter um conflito claro, de a gente mostrar como ele se debate com esse conflito, de ter uma resolução.

A gente apostou numa reflexão sobre uma questão social a partir de uma intimidade do protagonista. Às vezes quando você trata de questões sociais, principalmente no jornalismo, você apela para uma reflexão racional, e a gente quis jogar com esse elemento da emoção e da identificação.

 

Imagens de cinema

Desde o teste de câmera percebemos que o Ivan fazia questão de ser franco diante da câmera, assumia riscos, não parecia ter a personalidade sob controle diante da câmera. No início a gente passou um bom tempo sem poder filmar fora, era só a casa do Ivan.

Eu lembro que a Juliane Peixoto, que é diretora de fotografia do filme (junto com Guilherme Silva), disse “acho que tem um filme aí” quando ela filmou o Neto com aquela toca de papel alumínio. Já havia a ideia de filmar os caras fazendo luzes, que é um traço cultural muito forte da juventude de periferia, mas aquela cena tinha uma coisa de inusitado, estranho. Foi um sinal de que tinham imagens fortes ali.

Também tinha um desejo nosso de fazer um filme bonito, não em termos de beleza pela beleza. Normalmente essa galera é retratada de uma maneira tão feia… então tinha a responsabilidade de fazer um filme bonito.

 

Moralidade à prova

Existia uma reflexão política e estética, mas ela tinha que anteceder o filme. O filme tinha que processar essas questões em termos de imagem, pelo menos a gente tentou não ficar sublinhando as coisas.

Outro ponto que é um dos grandes problemas desse cenário do sistema penitenciário e do poder judiciário é que a coisa está baseada numa moralidade. Toda hora estão subjugando quem está sendo acusado ou quem já foi condenado, lembrando a ele que ele errou e que precisa se adequar.

A Fábrica Escola é muito isso. Apesar de parecer uma ação mais benévola, por tirar da cadeia, ao mesmo tempo é um espaço que repete a lógica do presídio. Tem câmera por todo lado, você é revistado quando entra, o almoço é anunciado por uma sirene altíssima. Essas coisas parecem mimimi, mas eu acho que expressam o que está em jogo, que é uma moral que precisa ser a todo tempo reafirmada e que é destinada de uma forma muito rígida para determinado grupo da nossa sociedade.

Os grupos mais privilegiados não precisam seguir essa moral tão estrita. Inclusive acho que é por conta dessa moralidade que, tirando o rap, talvez apenas a igreja evangélica consegue ter uma relação mais forte com essa galera, porque para seguir essa moral e suportá-la, só com o neopentecostalismo, só com uma fé daquele tipo. Se o filme fosse moralista, a gente estaria repetindo o que está em jogo, que é a imposição dessa moral.

 

Leia também:

>>> Texto sobre Corpo Delito

>>> Juliana Antunes fala sobre Baronesa

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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