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Filme exibido no Olhar de Cinema adentra a rotina de hospital psiquiátrico

15/06/16 às 13:12 Atualizado em 15/06/16 as 13:23
Filme exibido no Olhar de Cinema adentra a rotina de hospital psiquiátrico

A realização de um documentário para a televisão sobre pessoas com o Mal de Alzheimer teve um resultado não satisfatório para os diretores Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, mas colocou a dupla em contato com um complexo hospitalar de Lisboa em que também está localizada a Unidade de Internamento de Psiquiatria Forense, que abriga pacientes que cometeram crimes inimputáveis. É neste local que foi realizado o documentário Talvez Deserto Talvez Universo, que fez a sua estreia latino-americana na seção Novos Olhares (dedicada a primeiros longas) do 5º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.

Como só há homens entre os internos, a presença de Karen naquele ambiente não foi autorizada. O português Miguel frequentou o local por dois meses e meio, enquanto a brasileira Karen recebia o material ao longo desse período e, com seu olhar de montadora, começava a formatar o que viria a ser o filme, que teve a sua primeiro exibição no ano passado, durante o DocLisboa.

Em conversa com o Cine Festivais durante o Olhar de Cinema, Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes falaram sobre diferentes aspectos da produção de Talvez Deserto Talvez Universo.

 

Cine Festivais: O início do filme tem planos de câmeras de vigilância, muros, e passa como primeira impressão uma certa imobilidade e um apagamento da individualidade, pois não vemos os rostos daquelas pessoas. A partir daquele momento me parece que o movimento é o de tentar dar vida àquelas pessoas marginalizadas. Como isso foi pensado durante as filmagens e a montagem?

Miguel Seabra Lopes: É quase impossível filmar uma instituição psiquiátrica e não ficar tentado a dizer que essa prisão tem um aparato de segurança, queríamos que isso fosse mostrado. Queríamos também mostrar que ali é um lugar em que as pessoas estão frustradas, dormem a maior parte do dia. Essas imagens eram as mais fáceis de captar, havia pessoas dormindo nos cantos mais loucos.

 

Karen Akerman: Acabou fazendo parte da estrutura do filme essa nossa chegada gradual até essas pessoas, desde uma coisa mais fria distante e anônima até uma aproximação dentro daqueles ambientes, terminando com uma cena bem íntima e forte em um quarto. Foi uma estrutura pensada à medida que a gente foi vivenciando isso no dia a dia da filmagem.

 

CF: Em um plano que mostra apenas o pé de uma pessoa dormindo em um banco a impressão que tive é que a maneira de filmar aquilo remetia a uma ideia de caixão, de morte. Essa temática estava incluída dentro das suas preocupações? A escolha do preto e branco tinha algo a ver com uma ideia de melancolia?

MSL: Para mim o preto e branco não traz melancolia nesse filme, apesar de ele estar geralmente associado nos dias de hoje a uma ideia artística. A questão da hierarquia era muito importante, pois através da cor você consegue classificar as pessoas em diferentes grupos com mais facilidade. Com o preto e branco você até vê, mas não repara muito nisso, não sabe direito quem são os burgueses e quem são os pobres.

 

KA: Sobre a questão da morte, acho bom que haja várias leituras do filme. Uma coisa que quis deixar presente na montagem foi a passagem de tempo, muito preenchida com corpos deitados ou dormindo. Vejo mais como um passar de tempo em vida.

 

MSL: Isso não deixa de ser uma morte, porque realmente é uma vida adormecida. Uma das coisas importantes é que entre as pessoas que estão lá há várias que tomam medicação para não sofrer fisicamente, pois têm um sofrimento psicológico que se transforma em sofrimento físico, uma angústia insuportável.

 

CF: Filmes que costumam tratar sobre a questão da sanidade, como Um Estranho no Ninho, geralmente problematizam o lado de fora, tendo uma postura de denúncia ou posicionamento contra aquelas práticas. Vocês chegaram a pensar em explorar um pouco mais questões externas ao local? O quanto acham que esse é um filme político?

KA: Essas pessoas estão muito dopadas, alienadas. Essa questão política não é de denúncia, é de questionamento sobre o tipo de psiquiatria que se promove hoje em dia e há muito tempo. Se por um lado elas precisam da medicação, por outro elas têm a individualidade tirada, ficam seres vegetais.

No filme isso aparece em dois momentos: na cena em que vemos os enfermeiros separando as centenas de pílulas que são utilizadas naqueles tratamentos e no momento em que o Nelson diz que toma muitos remédios, que aquilo faz com que a sua barriga cresça e que acredita que a psiquiatria é uma “parvoice” (estupidez).

 

MSL: Tivemos a preocupação de nunca falar muito sobre o funcionamento daquele lugar. Uma das coisas que nos incomodam nesses filmes sobre loucura é a necessidade de atirar o tema na cara do espectador durante todo o tempo. Em Um Estranho no Ninho parece que ficam nos dizendo repetidamente que “eles são maluquinhos”, e isso se torna insuportável a certa altura.

Nós fomos à procura de outra coisa. Nesse lugar em que todo mundo diz “olha a instituição dos maluquinhos”, fomos à procura de pessoas que vivem ali nessa condição. Para nós é uma manifestação política por tentarmos contar a história de pessoas que estão em uma situação, e não em que as pessoas são uma situação.

 

CF: Um personagem do filme, o Custódio Pacheco, me lembrou bastante a figura do comediante italiano Totó, que fez filmes como Os Eternos Desconhecidos, de Mario Monicelli. Vocês veem naquele personagem uma feição anárquica parecida?

MSL: Com certeza ele é um herói das antigas. Em quase todos os cinemas do mundo há um Totó, com mais ou menos classe. Uma figura desrespeitosa, que tem uma personalidade que ocupa muito espaço. No caso do Pacheco é mais complexo, porque ele não só está ali há muito tempo, mas tem uma doença mental e possui demências associadas à velhice. Ele tem uma memória muito frágil, mas tem uma energia contagiante. Por outro lado, é um homem bem perigoso, você não pode virar as costas.

 

CF: Nas filmagens, você sentia que os homens do hospital modificavam seu comportamento por causa da câmera?

MSL: Na maior parte do tempo eu não senti que eles tinham uma mínima preocupação com a câmera. O fundamental sempre foi a troca, não quisemos ter nenhuma cena “roubada”, sempre deixamos eles cientes da presença da câmera, o que eles não sabiam algumas vezes era se ela estava ligada ou não.

Teve um dia em que eu precisei pedir autorização para utilizar as imagens deles no trabalho, e um dos homens que eu queria que fosse um personagem do filme, mas que acabou não entrando no corte final, veio me perguntar “você vai fazer um filme?”, sendo que eu estava lá há dois meses e meio.

 

* O repórter está hospedado em Curitiba a convite do 5º Olhar de Cinema

 

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