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“Cinema demais pro jornalismo e jornalismo demais pro cinema”

01/03/18 às 19:01 Atualizado em 10/10/19 as 00:51
“Cinema demais pro jornalismo e jornalismo demais pro cinema”

“É preciso dizer a algo como este produto que, por mais competente que seja, ele não é um filme de cinema”, escreveu o crítico Eduardo Valente à época da estreia de Carne e Osso, trabalho de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Desde então, a dupla de jornalistas dirigiu outros três documentários, incluindo Entre os Homens de Bem, cuja estreia se deu no Festival de Brasília de 2016 – evento que, coincidentemente, contou com Valente na direção artística. O quarto longa-metragem de Caio e Carlos Juliano (o Caju), Cartas para um Ladrão de Livros, foi exibido no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo do ano passado, e estreia no circuito comercial nesta quinta, 1º de março, também levantando reflexões semelhantes à daquela obra inaugural. “Acho que nossos filmes ficam em uma espécie de limbo. Eu brinco que nossos filmes talvez sejam cinema demais pro jornalismo e jornalismo demais pro cinema. É uma crítica com a qual a gente lida recorrentemente”, explica Caju.

Os diretores não tergiversam quando falam sobre o modo como encaram o meio cinematográfico. A ideia deles é a de dialogar com um público de perfil mais amplo possível, tendo para isso a necessidade de estabelecer o contexto das coisas e de utilizar recursos tidos como didáticos. No caso de Cartas para um Ladrão de Livros, o documentário teve como ponto de partida as correspondências trocadas entre Caju e Laéssio Rodrigues de Oliveira, considerado pelas autoridades brasileiras o principal ladrão de obras raras do País. Ao todo, ele já passou mais de dez anos detido em penitenciárias de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde se encontra atualmente recolhido.

“Acho que sempre deixamos muito claro pra ele que nosso objetivo era remontar essa história e contar isso a partir do nosso ponto de vista – e ao mesmo tempo deixando o Laéssio se expressar”, comenta Carlos Juliano, que descreve o personagem principal do documentário como “um cara muito carismático, despachado e abusado”. Um pouco por conta desse magnetismo, o filme opta por apresentar entrevistas de quem se contrapõe a Laéssio, como um delegado da Polícia Federal e a diretora do Arquivo Geral do Rio de Janeiro.

Em conversa com o Cine Festivais, os diretores Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros falaram sobre o processo de realização do documentário Cartas para um Ladrão de Livros, bem como a respeito da relação que estabelecem entre o jornalismo e o cinema.

 

Cine Festivais: Vocês têm experiência tanto com televisão quanto com impresso, e desde 2011 também com o cinema. Como vocês percebem o alcance desses filmes que vocês têm feito? Muito se diz que um filme como o Cartas para um Ladrão de Livros serve para levar essa história para mais gente, mas ao mesmo tempo me pergunto se o alcance de uma reportagem publicada na Folha ou exibida no Profissão Repórter não seria maior que o desses documentários. Queria saber como vocês sentem isso, do alcance que esses quatro filmes têm tomado, e mais particularmente agora o Cartas.

Caio Cavechini: É evidente que a relação de público que se estabelece com essas plataformas é diferente, mas existe uma questão básica de profundidade para nós. Você troca um pouco do alcance por muita profundidade, e acho que isso é central em nossa busca pelo documentário. Uma reportagem tem uma certa síndrome de embrulho de peixe, o jornal no dia seguinte virará isso. Por mais que muitas reportagens nossas até tenham uma certa persistência no tempo – as pessoas lembram, e tal – o filme é uma coisa que fica, né? Então entendemos essa busca do documentário meio por aí.

Se for pegar o caso do Carne e Osso, lembro que o Eduardo Valente, que nem conhecia a gente na época, escreveu uma crítica bem dura, também apontando isso de “por que cinema?”, e aí achei aquilo incrível, não só pela profundidade da crítica, mas pela maneira como ele abordou o filme. Eu quis me apresentar para ele, conversar… Hoje trocamos ideias numa boa, não fiquei magoado pelas palavras duras, mas quis explicar também que era uma reportagem sobre trabalho em frigoríficos que nunca conseguiria ter sido feita regularmente num trabalho em televisão.

O tempo de vida do Carne e Osso foi mais ou menos de dois, três anos; ele ganhou vida própria, algo que uma reportagem não teria.

 

Carlos Juliano Barros: Acho que é exatamente isso, são dois fatores que se combinam. Tem esse lance da autoralidade, essa ideia de expor um assunto, abordar um tema de maneira singular, ter um olhar próprio sobre um assunto que, em geral, você não tem como abordar se você trabalhar num veículo de comunicação regular porque existe uma série de protocolos, de hierarquias que nem sempre te possibilitam abordar esse tema da maneira como você gostaria.

Sem querer ser pretensioso, longe disso na verdade, mas quando você se predispõe a fazer uma obra mais autoral, ela ganha de fato essa perenidade. Por exemplo, quando se fala sobre o Laéssio [personagem principal de Cartas para um Ladrão de Livros] imagino que muitas pessoas vão poder pesquisar matérias sobre a vida dele, vai haver uma série de materiais disponíveis na internet sobre a história dele, mas ao mesmo tempo o filme é um marco, as pessoas tendem a encarar isso como referência. Então acho que essas obras de fôlego têm essa capacidade de ser não só um retrato, mas também uma lembrança. É um documento histórico mesmo, mais do que um retrato fugaz que você bate o olho e no dia seguinte já está superado pela dinâmica dos acontecimentos.

 

Caio: Tem um traço nosso de trabalho que tem a ver com isso que você está perguntando, que é um pouco a busca de ser o que as pessoas chamam de didático – às vezes com tom pejorativo, às vezes positivo, a gente não sabe muito bem, mas falam isso -, porque a gente tem essa vontade de comunicar no cinema como a gente se comunica em outras plataformas, com um público amplo, com a senhora, com a criança… Enfim, queremos que as pessoas mergulhem na história. Às vezes a gente acaba caindo nessa de filmes que são didáticos, e aí as pessoas podem entender de maneira positiva ou negativa.

 

Vocês acham que esse didatismo está presente na maneira como vocês pensam o projeto dos filmes formalmente? No sentido de “como vamos contar essa história a partir do cinema”, essa é uma preocupação de vocês?

Caio: Acho que sim. Tem esse aspecto da clareza. Queremos que as pessoas entendam de maneira muito clara, então a clareza da mensagem é importante para nós. Esse filme tem uma série de ambiguidades e pra nós é importante ser claro quanto a essas ambiguidades do personagem, da nossa relação. E também temos uma necessidade, que vem um pouco da nossa experiência jornalística, de estabelecer o contexto. Estamos sempre preocupados com como daremos conta de determinado contexto, algo que é também uma necessidade jornalística e que está um pouco nessa pergunta que você traz.

 

Carlos: Acho que em primeiro lugar tem essa necessidade de dialogar com um público mais amplo possível, esse é um compromisso do qual não abrimos mão, essa ideia de tentar fazer filmes que possam interessar ao segmento mais amplo de pessoas justamente por pensarmos que esse cinema de atualidades, que mexe em vespeiros que não são tocados em geral, contempla temas que merecem uma abordagem mais rica. Aparentemente, são temas que estão no dia a dia das pessoas, seja trabalho degradante, seja impactos ambientais, seja história de um criminoso, são coisas aparentemente triviais e cotidianas, mas é sempre importante a gente conseguir ampliar o escopo do olhar e dialogar com um público mais amplo possível.

Fora isso, tem uma questão de preferência mesmo. A impressão que dá é de que gostamos da precisão das coisas, por fazer as expressões denominarem aquilo que elas realmente querem fazer, então essa abertura pro ambíguo, pro nebuloso, talvez não seja muito a nossa onda. Porque a realidade por si só às vezes é tão maluca, tão impressionante, que o simples fato de trazê-la da forma como ela é já é suficiente para despertar nas pessoas certa reflexão, certa confusão, então às vezes se ater à realidade já é suficiente para gerar esse estranhamento com o mundo. E isso é uma tradição que não vem da gente, na literatura isso é muito longo também.

Acho que a gente está mais pra linguagem referencial do que pra linguagem poética. Mais pra linguagem nua e crua que pra simbólica. Evidente que isso não quer dizer que só exista uma camada de leitura nos nossos filmes, que seja superficialidade à toda prova. É claro que é possível trabalhar isso de uma maneira a lapidar essa linguagem, essa realidade, pra que ela te traga diversos níveis de interação com a obra, mas ao mesmo tempo é primar por essa linguagem mais referencial e trazer a realidade nua e crua como ela é.

 

O Caio falou desse texto do Valente, de 2011, e é curioso que o Valente depois selecionou o filme de vocês, o Entre Os Homens de Bem, para o Festival de Brasília. Acho que esse é um exemplo também de como uma separação estanque entre forma e conteúdo não existe. Pensando nisso, queria saber de vocês como foi essa fricção – que imagino que exista – entre o ambiente jornalístico do qual vocês vêm e o ambiente dos festivais de cinema. O que esta fricção trouxe de reflexão sobre os filmes para vocês?

Caio: Quando encontramos o Valente em Brasília [em 2016] ele falou: “Pô, o Caio foi um dos poucos caras que quando escrevi uma crítica ele veio me agradecer desarmado”, e tal. Mas não em um exercício de falsa humildade, mas é porque o jornalismo, até por esse caráter muito regular e fugaz, é uma atividade que pensa pouco sobre si mesma. A gente meio que encontrou no cinema esse ambiente de muita discussão, debate, e isso é muito bacana, como engrandecimento pessoal, como reflexão. Quando fui pela primeira vez pro Festival de Brasília, com um curta em 2011 ou 2012, poxa, fiquei fascinado também por essa possibilidade de assistir a um filme totalmente aberto sem entender alguns caminhos e daí vem um realizador no debate e a coisa se completa ali no dia seguinte. É um ambiente que não existe muito no jornalismo, o jornalismo até evita um pouco falar sobre si mesmo… Hoje em dia tem falado um pouco mais por pressão externa e crítica de outros meios, mas não é um ambiente como o cinema, que reflita sobre o seu fazer.

 

Carlos: Acho que nossos filmes ficam em uma espécie de limbo. Eu brinco que nossos filmes talvez sejam cinema demais pro jornalismo e jornalismo demais pro cinema. É uma crítica com a qual a gente lida recorrentemente, e que também a gente traz pra dentro do trabalho pra tentar esgarçar esses limites, entender e brincar com esses limites também. Mas acho que é isso, o cinema se apresenta pra gente como possibilidade de refletir sobre o próprio fazer do nosso trabalho e expandir horizontes com os quais no dia a dia, pela natureza do nosso ofício, não temos muita oportunidade de fazer.

 

Pegando um pouco esse aspecto, geralmente nesse ambiente de festival de cinema muito se discute com relação às influências dos cineastas. No caso de vocês, havia algo nesse sentido com relação a algum tipo de documentário ou documentarista que serviu de referência, ou essa ideia de fazer uma investigação mais ampla, vinda do jornalismo, prevaleceu no sentido de vocês não terem tanto essa pegada da influência?

Caio: Cara, assim, a gente frequentemente é influenciado tanto por cineastas quanto por obras, mas a gente não tem um estilo. Se for ver, nossos quatro documentários foram muito diferentes entre si, porque somos como garimpeiros de histórias, e cada história meio que exige uma abordagem pra se completar. O Entre Os Homens de Bem é mais um documentário observacional, tentando trazer um pouquinho de linguagem de redes sociais; agora o Cartas mistura um pouco do cinema em primeira pessoa com o cinema de entrevista, que não é muito a nossa onda anterior.

 

Carlos: Por exemplo, no Entre os Homens de Bem a gente citava o Entreatos, do João Moreira Salles, como referência. Tinha essa ideia de que era um filme sobre política, mas com linguagem de cinema direto, deixando as coisas acontecerem na frente da câmera. Mas ao mesmo tempo o filme não seguiu apenas esse caminho, nós mexemos com essa linguagem de redes sociais, também fizemos intervenções, uma ou outra entrevista, até fazendo certa brincadeira com os paredões do Big Brother, né.

 

Caio: No início do Cartas para um Ladrão de Livros a gente pensou muito no filme O Impostor. É um documentário sobre um garoto que está desaparecido e de repente aparece na Espanha, telefonando pra polícia dizendo que apareceu. Bom, o título já diz, na verdade é um cara um pouco mais velho que se passa por esse menino, se apropria da história desse menino e vai pros EUA. O filme usa um pouquinho de reencenação, é interessante. A gente até imaginou fazer isso um pouco, por esse caráter malandro do Laéssio, ao mesmo tempo carismático, e a sinceridade com a qual ele trata a história dele. Mas logo a gente viu que era um filme também muito diferente do que a gente poderia fazer.

 

Carlos: A gente pensou em ficcionalizar algumas passagens, né, mas aí, pela própria abertura que o Laéssio deu, pela construção da relação que a gente teve e por ele ser uma pessoa que, na nossa visão, rendia bastante na frente da câmera, a gente optou por esse caminho também de segui-lo, acompanhá-lo e deixar as coisas acontecerem na frente da câmera.

 

Com esse tema especificamente, acho que uma das questões do Cartas é essa sua relação com o Laéssio como fonte. Sabemos que um dos dilemas éticos principais do jornalismo é justamente como lidar com a fonte. Queria que você comentasse o que mais particularizou o Laéssio para você enquanto fonte?

Carlos: Então, eu como jornalista evidentemente já entrevistei uma série de pessoas, já me dediquei a grandes reportagens, então tive envolvimentos intensos com algumas fontes, alguns personagens de reportagens, mas o envolvimento com o Laéssio é de longe o mais intenso, o mais forte, porque foi uma relação construída ao longo de muito tempo. O Laéssio também tem como característica isso de ser uma pessoa intensa, que demanda bastante, e a gente tinha essa necessidade também de… Por exemplo, até chegar ao ponto em que o Laéssio contou tudo pra gente demorou bastante. No começo ele tinha uma série de receios, de reticências, porque ele mesmo não queria falar muito dos crimes que cometeu, das pessoas com quem negociou… O próprio Laéssio no começo tinha uma série de hesitações sobre a forma como contar a história dele, mas com o passar do tempo percebeu que isso não o prejudicaria e se sentiu mais à vontade pra compartilhar. Então foi um processo muito longo de construção de confiança com o Laéssio.

Acho que também pelo fato de ele já ter sido procurado muitas vezes por jornalistas, mas sempre com essa ideia de retratá-lo tão somente como um criminoso, ele tinha receio. Tentamos mostrar pra ele que evidentemente teríamos que falar sobre os crimes que ele tinha cometido, mas também ampliando um pouco, dando um zoom out na história dele, porque ela é muito interessante. Apesar dos crimes que ele cometeu, todo o contexto, tudo que fez, as pessoas com quem se relacionou, a forma como ele se expressa, tudo contribuiria para fazer um filme interessante. Então, de longe, a relação com ele foi a mais intensa no sentido jornalista-fonte.

Com o Jean (Wyllys) também foi bem forte. Ele tem outro perfil, é um cara muito mais escolado com essa relação com as câmeras, um cara muito visado, mas também foi um processo longo de construção de confiança pra que pudéssemos fazer o filme. A gente demorou dois anos do primeiro contato até começar a gravar. Fiz uma matéria sobre ele e aí depois de dois anos é que começamos a gravar, teve esse processo de convencimento também.

 

O Carlos aparece como personagem ativo no filme e o Caio não. Quando o Caio entrou no filme e como foi a sua relação com o Laéssio?

Caio: Quando o Caju contou que estava se correspondendo com o Laéssio, eu comecei a tentar “xavecar” ele pra fazer o documentário…

 

Carlos: É, na verdade, o pai do documentário é o Caio. Quem de fato levou essa história pro audiovisual foi o Caio, né?

 

Caio: Enfim, falei “faz o livro, mas vamos fazer o documentário também”. Quando sentamos pra gravar entrevista com o Laéssio, ele se mostrou esse cara também com carisma, força, certa habilidade pra falar e tal. E pensamos “poxa, isso tem que dar documentário”. Em todas as gravações com o Laéssio eu estava lá, tem até perguntas que eu faço, mas claro, quem se correspondia com o Laéssio era o Caju, e nós quisemos deixar isso forte na montagem, não tinha como o filme esconder isso.

 

Tem um momento do filme em que o Laéssio aparece mais irado, quando fala da mãe dele. Diz que se mexerem com ela, ele queima a Biblioteca Nacional. Então é um personagem que tem esse humor variado, né?

Carlos: É, mas sinceramente acho que aí é um momento em que o próprio Laéssio está querendo construir um personagem pra si próprio e pra câmera. Tanto é que ele dá essa declaração de botar fogo na Biblioteca Nacional se complicarem a mãe dele e logo depois disso cai numa gargalhada extrema. Me parece que ele não está falando isso seriamente, até porque ele tem uma dificuldade tremenda de levar qualquer coisa a sério. Então ele está o tempo inteiro brincando, fazendo declarações provocadoras mais pra chocar, pra causar rebuliço, buchicho, babado, confusão… Ele tem essa vontade de desafiar, encher o saco, causar espanto, acho que é um traço muito forte da personalidade dele.

Ao mesmo tempo era importante trazer isso pro filme porque evidentemente algumas pessoas vão levar isso a sério, e é natural que façam isso. É legítimo que as pessoas se ofendam com o que ele fala. E acho que o filme também caminha nessa direção, a gente não está lá para dourar a pílula. Tem gente que vai se indignar com aquilo, se ofender, e acho natural. Acho que o próprio Laéssio não se importa com isso, ele tem plena consciência de que os atos que ele comete, as falas que profere, as declarações que ele dá podem magoar e ofender as pessoas, mas acho que ele não está muito preocupado com isso.

 

Mas em algum momento você sentiu tom de ameaça, inclusive na relação dele com vocês?

Carlos: Cara, aí vai um pouco também da habilidade de ir costurando essa relação. É isso, o Laéssio é um cara que demanda muito, é um cara muito intenso, mas evidentemente a gente sempre soube impor limites também, sabe… Sempre deixamos muito claro e transparente qual era o objetivo, que era um filme pra contar a história de vida dele, então qualquer limite que pudesse ser ultrapassado ali a gente não estaria disposto a fazer essa concessão. Acho que vai um pouco dessa construção…

Na medida em que impusemos alguns limites, ele também foi sacando que não adiantava forçar a corda pra algum lado porque não ia ter nenhum retorno com isso. Acho que sempre deixamos muito claro pra ele que nosso objetivo era remontar essa história e contar isso a partir do nosso ponto de vista – e ao mesmo tempo deixando o Laéssio se expressar.

 

O jornalismo meio que exige o outro lado, o cinema não necessariamente. Você pode fazer um filme pela perspectiva de um só personagem, de uma determinada pessoa. Essa ideia de ouvir o outro lado sempre esteve presente com vocês? Como vocês pesaram a participação, o tempo de tela…?

Caio: Mas acho que também não é uma exigência do jornalismo, né. Acho que às vezes vira até um protocolo prejudicial pro jornalismo, porque nessa necessidade do outro lado às vezes você pega um determinado problema da cidade e o poder público se manifesta por meio de nota, e essa nota acaba sendo a palavra final da reportagem. Então a gente também se questiona um pouco sobre isso. Por exemplo, no Carne e Osso não existe outro lado, é um filme com recorte muito claro, basicamente com os trabalhadores de frigoríficos, um filme completamente mergulhado nessa atividade do corte de carne.

Agora, o Laéssio tem um pouco esse magnetismo, né? A gente gravou muitas outras entrevistas, um pouco pela necessidade de contexto e tal. A gente entendeu que precisava contrapor esse depoimento a outras pessoas que viveram essa história de pontos de vista diferentes. Gravamos muitas entrevistas, mas por uma sorte, e também por decisão nossa, a gente ficou só com aqueles que tiveram um envolvimento pessoal com o Laéssio. A diretora do Arquivo Geral da cidade, o policial federal, o bibliotecário do Museu Nacional, o próprio amigo do Laéssio, são quatro pessoas que entram no filme com envolvimento bastante emocional na história… De desapontamento com o Laéssio, mas também de gosto pelos arquivos, pela história e tal. Se fosse simplesmente pra contemplar o outro lado, não sei se teríamos mantido esses depoimentos no filme, mas eles são depoimentos que têm um certo magnetismo também, assim como os do Laéssio. Se não ficaria até um pouco desigual: o Laéssio como personagem carismático e o outro lado entrando só pra cumprir tabela. Acho que não é por aí que pensamos a entrada deles, eles realmente nos surpreenderam nessas entrevistas.

 

Na entrevista do delegado, ele fala que a cadeia funciona, e fica explícita uma certa contradição porque os outros criminosos não foram presos, só o Laéssio. Queria saber como vocês acham que a cadeia impacta o Laéssio. Qual é o efeito que a cadeia exerce sobre ele, depois de tantas idas e vindas?

Carlos: Cara, acho que essa história da cadeia foi mais interessante para a gente conhecer o funcionamento do sistema penitenciário brasileiro. È evidente que o delegado está no papel e no direito dele de achar que cadeia resolve, inclusive há muita gente que acha que o Laéssio tem que estar sim preso porque ele comete diversos crimes de forma reincidente e que a única forma de impedir que ele cometa outros crimes é deixá-lo preso.

Acho que as pessoas estão mais que cansadas de saber que o presídio está longe de ser uma forma de impedir a atuação do crime organizado, muito pelo contrário, acho que as principais facções que comandam o crime organizado hoje no Brasil surgiram nos presídios, inclusive como formas de organizar os detentos. Então é um efeito colateral pesado da política do encarceramento em massa. E o Laéssio já entrou cinco vezes, já ficou quase dez anos preso, e é uma pessoa que de fato aprendeu a viver nesse meio. O que pra muita gente é o fim do mundo, pro Laéssio está longe de ser isso, e talvez seja por isso que ele incomode tanto. O Laéssio é de uma amoralidade tão atroz que até o fato de ser privado da liberdade parece não incomodá-lo.

 

Caio: Acho que tem também algo que torna o Laéssio um personagem mais interessante, que é ter convivido com os extratos mais diferentes da sociedade brasileira. Ele diz que sentou na casa de tal milionário que serviu um suco pra ele, e ao mesmo tempo está ali com os chefes da cadeia. Tem uma relação até meio ambígua com os dois públicos: tem hora que ele tem certa vontade de estar entre os ricos, tem hora que ele os rejeita, assim como na cadeia tem hora que ele se sente como um cara que dá assistência e tem hora que ele rejeita também.

 

O filme retrata esse personagem que já foi preso tantas vezes, e ao mesmo tempo é lançado nesse contexto pré-eleições em que está muito forte o discurso do “bandido bom é bandido morto”. Como você acha que esse filme reflete sobre esse momento e como ele pode ser entendido nesse contexto a partir dessa parcela da sociedade cada vez maior que deseja esse tipo de atitude dos governantes?

Carlos: Certamente muitas pessoas que verão o Laéssio apenas como bandido vão defender essa ideia de que ele precisa estar preso e que lugar de bandido é na cadeia, mas acho que a ideia do filme é justamente tentar mostrar que essa realidade nem sempre é tão simples assim. A gente tem, por exemplo, o próprio delegado em depoimento, admitindo que ao fim a operação do estado, da polícia, do ministério público, conseguiu ali pegar apenas o baixo clero, mas não atingiu as pessoas que de fato compraram essas obras furtadas. A gente tem que lembrar que o Laéssio já ficou dez anos preso, está preso novamente, não está em casa de tornozeleira eletrônica como alguns grandes criminosos que vêm sendo condenados na Lava Jato. Acho que o filme de alguma forma escancara esse dois pesos e duas medidas que existe no Brasil no tratamento criminal, sobretudo de acordo com a origem e classe social das pessoas. Acho que o filme incomoda também por isso.

Tendo em vista o momento político do País, o crescimento desse discurso mais autoritário e conservador, evidentemente é um filme que intervém nessa discussão, inclusive para discutir se essa política de encarceramento resolve alguma coisa, se as pessoas que cometem grandes crimes no País estão sendo punidas… Enfim, acho que o filme revolve mesmo esse vespeiro.

 

Nesse sentido, acho que o filme tenta colocar muito claramente os dilemas éticos postos ali e de alguma maneira se antecipa a eventuais críticas que poderia receber. Queria saber se em algum momento vocês tentaram pesar se essa preocupação não estaria sendo excessiva, refletindo até que ponto vocês estavam se defendendo antes das críticas chegarem.

Caio: Acho que pode ser. A gente ainda não tem opinião formada (risos). O filme foi acontecendo, tem coisas que vieram quando ele estava sendo feito, no meio do processo, e o filme tem uma série de limites. Em determinado momento a gente pensou: “bom, o filme tem essa carga metalinguística em primeira pessoa, então vamos ser transparentes com tudo que rolou, vamos assumir que a gente tomou bordoada da imprensa, que a gente teve dúvidas, que teve limites, que precisamos esconder nomes, e tal.” Acho que essa foi a maneira que a gente achou mais honesta de trazer essas questões pro espectador e de não fazer um filme metalinguístico só em parte.

 

Carlos: Isso foi muito discutido, rediscutido, pesado, sobrepesado. Houve essas matérias que saíram de pessoas criticando o filme, que iria glamourizar bandido, então a gente também trouxe isso pra edição do documentário justamente pra mostrar que foram dilemas com os quais a gente se debateu e sobre os quais a gente pensou bastante. Acho que em alguma medida essas críticas são bastante legítimas e sinceras, em outra nem tanto, então é também um pouco do nosso próprio processo de ir assimilando essas bordoadas e entendendo como isso foi guiando o filme, né.

Para evitar que a gente mudasse o filme completamente por conta de um ou outro comentário, acho que era mais honesto mostrar que essa discussão sempre esteve presente, trazer essa discussão pro filme. Porque de fato, em algum medida, esses questionamentos são meio óbvios, a gente sempre teve também, não são super originais.

Que nem nesse momento em que perguntamos pro Laéssio se ele sabia que ia ter gente que ia ver o filme e gostar dele e outros que iam ver e condená-lo. Muita gente acha que aquele é um momento de mea culpa que fazemos, mas aquele é o momento em que abrimos o jogo pro próprio Laéssio. Não é o momento do filme em que nos eximimos de responsabilidade e tentamos de alguma forma ficar bem com todo mundo. É um momento também que a gente tenta colocar o Laéssio contra a parede e dizer que o filme não ia simplesmente glamourizar ele, pelo contrário, muita gente ia condenar ele e isso poderia ser inclusive usado contra ele…

E até é um momento que a gente particularmente gosta bastante do filme, porque o Laéssio foge da conversa, tenta tergiversar, tenta fugir do assunto, e a gente tenta colocar isso até pro próprio Laéssio se sentir desconfortável em alguma medida. Acho que uma leitura mais fina do filme, na minha opinião, mostra isso. É uma das poucas perguntas do filme que o Laéssio responde de maneira desconfortável, nas outras ele sempre está muito à vontade, muito cioso de si, muito engraçado, e naquela pergunta ele coça a cabeça, a feição dele claramente se modifica. Enfim, é uma maneira também de a gente colocar o próprio entrevistado contra a parede.

 

Vocês já mostraram o filme pra ele?

Carlos: Ainda não.

 

Caio: Você sabe que uma das ideias nossas era, já que o filme tinha essa metalinguagem toda, terminar o filme mostrando para ele. Assim como a gente mostra o teaser, mostrar o filme e terminar com isso, mas não conseguimos autorização pra entrar na cadeia.

Na última semana em que estava solto ele foi a uma exibição do Entre os Homens de Bem no Cinesesc. Aí ele falou “pô, fico imaginando quando eu for à exibição do meu documentário, como vai ser”… Deu uma semana e ele foi preso. Foi triste também, né? A gente imaginou que ele pudesse também estar aqui debatendo, com você podendo perguntar o que ele achou do documentário…

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