facebook instagram twitter search menu youtube envelope share-alt bubble chevron-down chevron-up link close dots right left arrow-down whatsapp back

Documentário exibido no 6º Olhar de Cinema mergulha na subjetividade infantil

14/06/17 às 12:42 Atualizado em 10/10/19 as 01:07
Documentário exibido no 6º Olhar de Cinema mergulha na subjetividade infantil

Lidar com o imaginário infantil sem recorrer a clichês como o da ingenuidade e o da inocência é um desafio para diversas áreas de conhecimento, incluindo o cinema. Garatujas, Badamecos e Outros Monstros, codirigido pelo casal João Castelo Branco e Elizabeth Moreschi, não é exatamente um filme para crianças, mas sobre crianças, trilhando a partir das falas e dos desenhos de garotas e garotos de uma escola municipal um caminho que visa apreender e refletir sobre a lógica da construção narrativa na infância.

“Entendemos que o monstro, aquele que vive debaixo das camas das crianças, é a tentativa de representar algo do irrepresentável, do que vem como estranho e assustador no encontro com o mundo. O esforço em elaborar este encontro com o mundo funda um saber muito próprio em cada criança, e a nós interessava dar lugar à voz de cada uma delas”, explica João.

O longa-metragem fez a sua estreia dentro da mostra competitiva Novos Olhares, seção do 6º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba – dedicada a filmes com propostas estéticas com diferentes graus de radicalidade.

Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, o diretor João Castelo Branco respondeu a algumas questões a respeito do processo criativo de Garatujas, Badamecos e Outros Monstros.

 

Cine Festivais: Quais foram as motivações iniciais que levaram à realização de Garatujas, Badamecos e Outros Monstros? O quanto estava presente a ideia de subverter um imaginário que retrata as crianças exclusivamente pela via da inocência e da ingenuidade?

João Castelo Branco: Há muito tempo eu queria fazer um filme sobre a relação entre a arte e a infância, mas foi quando começamos a pensar em ter filhos que o projeto veio à tona. O financiamento do filme saiu na mesma semana que descobrimos que íamos ter nossa primeira filha, a Emília (a Manoela veio quando estávamos montando o filme, quase três anos depois).

Desde o principio estava presente a ideia de levar a sério o universo infantil e o esforço vivido pelas crianças para elaborar o encontro do mundo interno com o externo. Sabíamos que esses esforços estariam expressos de alguma maneira na fala, nos desenhos e pinturas, no brincar ou em qualquer forma de comunicação.

Entendemos que o monstro, aquele que vive debaixo das camas das crianças, é a tentativa de representar algo do irrepresentável, do que vem como estranho e assustador no encontro com o mundo. O esforço em elaborar este encontro com o mundo funda um saber muito próprio em cada criança, e a nós interessava dar lugar à voz de cada uma delas.

A consequência deste ponto de partida é que não há espaço para ver a criança como ingênua ou inocente – que denota a tentativa de nós, adultos, em negar à criança este lugar de saber.

 

Enquanto os desenhos são inevitavelmente imóveis, as falas das crianças mostram que uma ideia de progressão narrativa e a lógica das imagens em movimento estão sempre muito presentes, algo que liga este ato à própria natureza do cinema. O quanto esta reflexão esteve presente nos processos de pesquisa, filmagem e pós-produção do filme?

Quando estávamos pensando na construção do filme havia a ideia de trabalhar mais com animações feitas a partir dos desenhos. Eu já havia feito experiências com animações misturadas ao live action num curta-metragem chamado Pequenos Retratos. Contudo, em Garatujas, Badamecos e Outros Monstros o ato do desenho e da pintura, bem como o da fala, era muito importante – o “ato” é inevitavelmente em movimento.

Foi aí que pensamos em O Mistério de Picasso, do (diretor francês Henri-Georges) Clouzot, porque ele inventou uma técnica que se parece com uma animação, mas é uma técnica de live action, na qual há um vidro entre a câmera e o personagem, que pinta diretamente sobre o vidro, ora sobre a superfície transparente, quando vemos o personagem pintar, ora sobre um papel translúcido colado ao vidro, quando vemos apenas o traço ou a pincelada e a marca deixada sobre o papel.

Além disso, a narrativa sobre o desenho é viva, não é imóvel, o que faz com que mesmo um desenho já finalizado tenha vida e movimento, porque ele conta histórias e faz emergir questões. Isso nos fez trabalhar com técnicas de animação quando queríamos ressaltar a vida (o movimento) dos desenhos, quando junto a essas histórias. Mas em alguns momentos queríamos falar do ato da narrativa, que é um ato do corpo, que gesticula, que performatiza a história desenhada.

 

Vi nos créditos que houve uma oficina de cinema com as crianças. Como se deu esse processo de aproximação com eles e com a escola para a realização do filme? O que mudava no quesito performático das crianças quando havia a presença da câmera?

Inicialmente fizemos experiências com atividades de desenho e pintura livres e sessões de conversa sobre o processo, dando margem para as crianças falarem sobre o que produziam livremente. Depois começamos a mapear temas e questões e também a propor atividades mais direcionadas para o que pensávamos que poderia ser o filme. Tudo isso sem a câmera e sem dizer a respeito do filme.

Em um dado momento fizemos uma roda e dissemos a eles que queríamos fazer um filme e eles adoraram a ideia! Nesse momento também apresentamos o restante da equipe. Conversamos com os pais (que já sabiam que estávamos desenvolvendo uma oficina de desenho) e todos concordaram. Foi aí que entrou a oficina de cinema, que foi coordenada pela Jessica Sato. As crianças experimentaram com a câmera e com o processo de fazer um filme. No final da semana elas criaram o som do filme deles, uma espécie de foley com a voz (parte desses sons foram para o filme). Essa oficina fez com que eles ficassem muito à vontade com o equipamento e com a equipe. Assim tudo aconteceu de maneira muito tranquila. As crianças foram incríveis, elas abraçaram e se apropriaram do projeto de uma forma muito intensa!

 

Esta edição do Olhar de Cinema abriu uma mostra específica para filmes infantis, mas o trabalho de vocês acabou selecionado para uma mostra que busca trabalhos de todos os tipos com algum nível de radicalidade estética. Por que ainda é incomum esta ideia de filmes infantis autorais que rompam com uma adesão exclusiva a um nicho temático? Quais filmes e/ou livros serviram como influências no processo de realização de Garatujas, Badamecos e Outros Monstros?  

As crianças costumam curtir o filme de uma forma que não esperávamos, mas o Garatujas… nunca foi pensado para crianças, mas sim como um trabalho que busca compreender algo do universo infantil. A ideia era que a narrativa do filme seguisse a lógica da construção da narrativa das crianças, e não uma lógica de dramaturgia convencional. Como essa atenção ao “ato” foi muito importante, isso imprimiu uma relação bastante sensorial com o material filmado, com o processo de montagem e com a construção do universo sonoro.

Eu citei acima O Mistério de Picasso como uma referência que está mais ligada a uma técnica de cinema que nos permitiu falar de algo que queríamos. Ser e Ter, do Nicolas Philibert, foi uma inspiração para refletirmos sobre as possibilidades de um olhar para as crianças. O trabalho do Daniel Fabre, que foi meu professor na França, foi muito importante para pensarmos as primeiras questões que nos motivaram a fazer o filme. Ele tem uma pesquisa linda que foi publicada sob o título Arts de l’enfance, enfances de l’art (Arte da infância, infância da arte). O Catatau do (poeta Paulo) Leminski também foi uma obra bem importante para chegarmos ao nosso monstro. Como na obra de Leminski, nosso monstro não é exatamente um personagem da história, mas um ser que habita o próprio filme.

Importante dizer que a Elis (Elizabeth Moreschi, codiretora) trouxe para o projeto um olhar a partir da psicanálise que também foi fundamental para o processo todo filme, com uma escuta muito atenta e capacidade incrível de associações entre as questões levantadas pelas crianças.

A minha mãe, Maria Teresa Castelo Branco, professora aposentada do curso de Psicologia e doutora em educação, também participou do processo de pesquisa nos assessorando nas questões sobre o desenvolvimento infantil e nos dando um olhar externo no processo de pesquisa.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

Entre em contato

Assinar

Siga no Cine Festivais