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Curta universitário que vai para Cannes tematiza a vida pós-demolições no RJ

15/05/17 às 16:30 Atualizado em 10/10/19 as 01:10
Curta universitário que vai para Cannes tematiza a vida pós-demolições no RJ

Localizada em Jacarepaguá, próxima ao Parque Olímpico que sediou os Jogos do ano passado, a Vila Autódromo se tornou sinônimo de resistência graças à luta de seus moradores contra a demolição do local e por indenizações dignas. Foi lá que o diretor Eduardo Brandão Pinto gravou o seu curta-metragem Vazio do Lado de Fora, que acabou selecionado para a Cinéfondation, a mostra de filmes universitários do Festival de Cannes – evento que começa nesta quarta (17).

“As moradoras – a maioria de quem estava à frente da resistência eram mulheres – nos receberam muito bem; além de apoiarem a realização do filme, elas tinham total consciência de que era um curta-metragem universitário, com uma linguagem experimental; isto é, que não contaria a história do lugar e nem funcionaria como mais uma denúncia da violência que aconteceu por lá”, conta Eduardo, que realizou o curta como aluno da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Com uma estética que remete a alguns trabalhos do chinês Jia Zhangke, como Em Busca da Vida, o filme foi realizado em meio aos escombros das antigas moradias, contando com uma maioria de atores profissionais e alguns moradores locais em seu elenco. Sem uma progressão narrativa linear, o curta-metragem é dividido em segmentos que não necessariamente se relacionam entre si, mas que têm como elo possível a ligação afetiva com a localidade.

Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, Eduardo Brandão Pinto falou sobre o desenvolvimento de Vazio do Lado de Fora desde a ideia inicial até a sua reverberação em um Rio de Janeiro que entrou em estado de crise profunda após a realização das Olimpíadas.

 

Cine Festivais: A resistência dos moradores de Vila Autódromo foi uma das situações mais simbólicas das violações de direitos cometidas durante a preparação de cidades brasileiras para sediar a Copa e as Olimpíadas. A ideia sempre foi realizar o filme ali? Como a pré-produção (incluindo roteiro e preparação de atores) teve seu tempo e métodos condicionados à rápida transformação que ocorria no local?

Eduardo Brandão Pinto: Escrevi o roteiro numa disciplina sobre Cinema e Cidade que cursei na UFF no segundo semestre de 2015. Minha referência não era ainda a Vila Autódromo especificamente, mas uma condição que a cidade como um todo vivia. Quem transitasse pelo centro do Rio experimentaria essa devastação espacial pela qual a cidade passava, com mudanças radicais frequentes, que pareciam não dar a mínima importância pra quem morava ali.

As populações que passavam por remoções – que vão muito além do Rio – viviam isso de um modo totalmente intensificado, com uma brutalidade que atinge diretamente o corpo de quem vive ali. Esse corpo afetado era algo que precisávamos trazer aos atores. Todos eles passaram por um processo de preparação em estúdio e algumas visitas para criar uma afinidade com o espaço e os moradores. Misturar em algumas cenas atores e moradores era uma forma de tentar trazer força para os corpos.

 

Qual foi a extensão da pesquisa realizada para o filme? Que tipo de relação a equipe criou com os moradores da Vila Autódromo e quais deles participaram efetivamente do filme? Houve algum tipo de autorização para filmar naquela área de escombros que estava passando por um processo de reurbanização?

Começamos uma pesquisa de locações em janeiro de 2016. Além da Vila Autódromo, mantivemos contato por um tempo com moradores da Favela do Metrô Mangueira, ao lado do estádio do Maracanã, que também viveram um processo de remoção igualmente violento.

Mas a Vila Autódromo tinha uma particularidade que nos chamava muito a atenção: se por um lado aquele espaço estava marcado por uma destruição chocante, por outro podíamos sentir no ar uma atmosfera de resistência bastante encorajadora. As moradoras – a maioria de quem estava à frente da resistência eram mulheres – nos receberam muito bem; além de apoiarem a realização do filme, elas tinham total consciência de que era um curta-metragem universitário, com uma linguagem experimental; isto é, que não contaria a história do lugar e nem funcionaria como mais uma denúncia da violência que aconteceu por lá. Essa era a única autorização de que precisávamos para filmar ali. Durante uns dois meses fizemos visitas semanais à Vila, em que elas nos contaram a história do lugar e nos ajudaram a planejar as filmagens.

 

O seu filme retrata uma espécie de não-lugar que só sobrevive pela memória impregnada nos personagens. Por que houve a opção por realizar planos que valorizam a profundidade de campo, e como eles se relacionam à escolha do título Vazio do Lado de Fora?

Acho que o protagonista do filme é o espaço da Vila e um suposto vazio que se forma com a destruição das casas e ruas. Nosso desafio era criar planos que se relacionassem intimamente com a experiência espacial de devastação. Assim, tínhamos que explorar o território em sua profundidade, suas texturas, suas vibrações sonoras, o caos ruidoso de uma vila em que dezenas de tratores e caminhões operam sem parar o dia todo, e também suas calmas, sua rarefação, seus repentinos silêncios que surgem no domingo, quando as máquinas param e retorna-se à paz de uma antiga vila de pescadores com uma linda vista para uma lagoa.

O filme fala um pouco de algo que não se vê, talvez porque produzir sua visibilidade/audibilidade seja um desafio constante. Essa visibilidade que a gente procurou – e não tenho nenhuma garantia se a gente encontrou – não está pronta, ela não está dentro das notícias, dos discursos, é uma coisa que está no ar, nas memórias, nos pedaços de parede, nos modos como os corpos permanecem existindo. Por isso, o espaço fora de tela pode às vezes dizer mais do que o que está em quadro, o silêncio mais do que a palavra, o chão liso e vazio mais do que aquele que era esquadrinhado por paredes. Talvez o lado de fora – da casa, do quadro, dos discursos – seja o que nos interesse.

 

Nesse sentido do uso da profundidade de campo e da captação de uma realidade urbanística em transformação, você acha que o filme dialoga de alguma forma com o cinema do chinês Jia Zhangke? Quais obras cinematográficas lhe influenciaram na realização do curta-metragem?

Fico feliz que você cite o Jia Zhangke, ele foi uma referência que atravessou o nosso processo, do roteiro à edição, especialmente Em Busca da Vida. Ele filma o espaço e os corpos dos personagens de um modo que parece que o corpo abandona suas emoções ou intenções psicológicas para se transformar num produtor de ritmos, texturas, intensidades. Exibi algumas vezes para os atores aquele plano em que vemos pelo buraco de uma parede o desabamento de um prédio, enquanto dois corpos à frente se movimentam. Um prédio inteiro que cai, um corpo agachado que se levanta; parece que tudo ali são apenas ritmos de movimentos. Tentei trazer um pouco disso para o filme.

Alguns cineastas foram importantes para nós durante o processo de desenvolvimento do projeto. Porém, em vez de tentarmos explicitar nossas referências, optamos por tomar esses filmes e cenas como inspirações, mesmo que nosso produto final se distanciasse bastante delas.

(Abbas) Kiarostami, por exemplo, é um diretor cuja obra eu revi inteira na pré-produção do filme, mas que talvez não seja perceptível quando se assiste ao curta. Especialmente Vida e Nada Mais foi importante pra gente. O filme acompanha a busca de um cineasta em meio a um povoado destruído por um terremoto. Mas o que interessa nessa busca é justamente a vida que persiste; não aquela que sobrevive biologicamente, mas aquela que continua se afirmando enquanto vida ativa, uma vida que se mantém viva estética e afetivamente.

Pensei bastante em Pedro Costa, no neorrealismo italiano, que trazem personagens com uma energia vital que vem não sabemos de onde, porque tudo ao redor parece desfavorável.

Outra referência importante pra mim são filmes feitos em contexto escolar. Desde 2014, trabalho num projeto que desenvolve oficinas de cinema em escolas públicas, o Inventar com a Diferença. No contexto do projeto, assisti a milhares – literalmente milhares, não é uma força de expressão – de vídeos realizados por estudantes de vários lugares do Brasil. O que sobressai em alguns desses vídeos é um interesse despretensioso por aquilo que está sendo filmado, o gesto corajoso de abrir mão de inserir no vídeo algum discurso, de filmar algo por simples curiosidade. Assim, vemos num plano alongado ora uma pessoa trabalhando, ora um arranjo de cores de uma barraca, o ritmo de carros passando por uma rua, corpos se movendo num pátio. Acho que tem um pouco disso no Vazio do Lado de Fora.

 

Passado o véu da Copa e da Olimpíada, o Rio de Janeiro teve escancarado um estado de crise financeira e moral, incluindo a prisão de um ex-governador. O quanto filmes como o seu, feitos no calor da hora, se relacionam com esse momento atual de um contínuo e amargo fim de festa?

Existe um tom distópico no filme que, acho eu, se relaciona com esse momento do Rio e do Brasil. Enquanto filmávamos, além de presenciarmos o que acontecia na Vila Autódromo devido à Olimpíada, vivíamos um Golpe de Estado. Lembro de emendar visitas de locações ou entrevistas de elenco para manifestações contra o Golpe no centro da cidade. Se tem algo que mudou do roteiro para o que foi filmado é certamente esse clima de que tem uma coisa sinistra acontecendo. Isso não era muito destacado no roteiro. Quando eu assisti aos planos já gravados, fiquei com a impressão de que tínhamos feito um filme mais pessimista do que eu inicialmente imaginava.

 

O movimento atual é de debandada de correspondentes estrangeiros, que perderam interesse no país depois dos grandes eventos esportivos e das crises econômica e política. O que você acha que seu filme guarda de universal, a ponto de provocar o interesse da Cinéfondation?

Desde o início, o roteiro não se propunha a tratar da questão urbana a partir da denúncia ou do discurso militante, o que deslocava nosso interesse para uma universalidade da condição de quem vive num espaço em destruição. A gente se concentrava, sobretudo, no que havia de semelhante na experiência visual e sonora de pessoas que vivem em ruínas em contextos distintos, seja na cidade destruída por um terremoto, como em Kiarostami, pela construção de uma hidrelétrica, como em Jia Zhangke, pela guerra, como em Rossellini. Nos perguntávamos o que havia em comum nos modos como esses cineastas filmaram a vida após a demolição.

Assim, descobrimos que a Itália arrasada pela Segunda Guerra, que assistimos em Rossellini e De Sica, tinha algo em comum com o Rio devastado pela especulação imobiliária. Isso, por exemplo, nos motivou a tomarmos uma decisão radical na edição de som: o Guilherme Farkas, que fez o desenho de som, usou ruídos de guerra para compor as paisagens sonoras do filme, os sons de tratores foram substituídos por barulhos de tanques em movimento. E quem assiste ao filme frequentemente não se dá conta disso; talvez, ao menos sonoramente, uma cidade em guerra não seja muito distinta de uma cidade onde as grandes empreiteiras da construção civil são alguns dos principais produtores de capital.

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