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Subybaya, de Léo Pyrata

10/02/17 às 16:32 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Subybaya, de Léo Pyrata

Escrever sobre um filme é, antes de tudo, uma decisão. Desde já, decide-se por onde começar. Pergunta-se: qual a porta de entrada para falar deste filme? Onde estão seus índices que revelam sentidos escondidos? Um plano, uma sobra de diálogo, uma última decisão do personagem. Para além destas dúvidas, Subybaya é, contrariamente, um destes filmes cuja intervenção na forma é tão latente que não é possível falar de outra coisa – ao menos inicialmente – se não do procedimento chave da sua mise-en-scène que melhor explicita o que está realmente em jogo.

Pela fratura que acontece em dado momento da narrativa, o filme revela, sob a fachada latente, uma segunda estrutura que põe em xeque a primeira estrutura, estabelecendo um diálogo metalinguístico entre um dentro e um fora a partir dos comentários de um grupo de mulheres às opções estilísticas do diretor. Um filme dentro de um filme. Uma segunda estrutura que atua de maneira auto-reflexiva mediante uma revisão crítica dos procedimentos de construção da personagem feminina configurados pelo filme – como o espelho do quadro As Meninas, de Velásquez, esta segunda estrutura restitui a visibilidade àquilo que permanece fora de todo olhar, neste caso, o lugar do diretor e a falta de autonomia da obra.

Em vista do distanciamento irônico que estabelece com relação à primeira estrutura, esta segunda estrutura gera e justifica, a partir de si mesma, a própria fachada, constante problematizada do momento de sua aparição efetiva até o final do filme. Embora contrárias entre si, ambas estruturas se articulam numa relação de profunda complementaridade. A narrativa do filme-fachada, correspondende à primeira estrutura, conformaria sua narrativa, desde o início, à normatividade dos elementos internos da segunda estrutura (um grupo de mulheres com opções políticas específicas). Uma conformação que não era pela adequação, mas pela inadequação de onde nasce o conflito. O fato é que, por mais que tenha aparecido somente no último terço do filme, a segunda estrutura estava presente em latência desde o início.

No entanto, esta segunda estrutura, subposta em regime de latência, não é suficientemente forte para determinar a forma por completo. Em seu desdobramento narrativo, Subybaya está “entregue à si” de tal modo que impede que a própria forma inscreva em si este distanciamento com relação ao conteúdo. Embora possamos traçar conexões paródicas entre determinados planos do filme e clichês do cinema brasileiro contemporâneo, este caráter pastichizante da reencenação não tem eficácia em impossibilitar uma adesão ao filme, caso desejado quando apresenta-se um material que traz em si as marcas de sua impotência em desempenhar sua “função natural”, deslocando o espectador para esta nova aparência anti-funcional. É impossível não notar, por exemplo, uma tendência ao desejo poético do artifício e a existência de um gozo do filme consigo mesmo naquelas cenas da festa. Um gozo de quem está excessivamente junto de ti, de quem não está tão certo em basear-se naquele material desgastado somente como um falso princípio organizador de totalidades funcionais, para além de uma tentativa de respeitar hipoteticamente a linguagem naturalizada para conquistar a confiança do espectador.

Em um filme como Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, o caráter pastichizante da reencenação dos ideais estéticos das publicidades institucionais, realizada pelo filme, era vigorado pelo deslocamento daquela estética para uma tela do cinema, onde a simples aparição de uma tal estética, normalmente vinculada a outros meios, já causa um efeito de estranhamento. Em Subybaya, se o seu objetivo é mesmo parodiar materiais do cinema brasileiro contemporâneo em crise de legitimidade, como afirmaram várias leituras sobre o filme, a operação necessariamente deveria ser mais complexa que a do filme de Marcelo Pedroso: não apenas uma transposição, mas uma maneira ainda mais astuta de quebrar a regularidade da forma sem quebrá-la por completo, gerando um efeito de estranheza que põe o distanciamento através desta operação, uma espécie de identificação desidêntica.

Por mais que existam elementos sistemáticos que ratifiquem esta tentativa do filme – os letreiros, a trilha, a maçã, o uso reiterado de alguns chavões, a cerimonialidade ou extravagância de alguns movimentos de cena – eles ainda não são capazes de fragilizar a forma a ponto de gerar o efeito de estranheza pelo qual o filme assumiria uma distância correta diante de tais sistemas naturalizados de aparências, uma distância pela qual o espectador se tornaria cúmplice daquele jogo e, sobretudo, sentiria a vertigem uma vez posto diante do abismo que separa a literalidade do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação. Sem essa possibilidade de revelação da inadequação entre enunciado e enunciação, a ironia se torna um mero mal-entendido.

Se pensarmos, por exemplo, a dramaturgia brechtiana, percebemos como o mesmo gesto auto-reflexivo põe paulatinamente um distanciamento da obra consigo mesma, revelando uma estrutura dual interna a partir de procedimentos específicos do seu meio (no caso de Brecht, o teatro). Ali, onde o próprio Brecht enunciava que o objetivo era “conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos” através disto que ele também chamava de “efeito de estranhamento”, isto não se concretizava somente quando algum personagem virava diretamente para a platéia, numa atitude monológica, e dizia algo como “vejam como eu irei agir agora”, indiciando a hipocrisia e a má-fé, inerentes às suas atitudes naturais, que irão mascar os interesses originais da sua ação seguinte – um mascaramento próximo àquilo que seria o fetiche da mercadoria tal como descrito por Marx.

Para conquistar o efeito de estranhamento apto a pôr o distanciamento entre as estruturas internas da obra, Brecht fazia com que a segunda estrutura determinasse indiretamente a estrutura latente através de operações estéticas como a redução do cenário ao mínimo (de modo a não oferecer uma atmosfera verossímil), do despojamento das curvas dramáticas pré-fabricadas dirigidas ao clímax, do cerimonial no qual se baseava o gestuário dos personagens. Como foi dito, se havia algum caráter pedagógico nas obras, ele não se realizava somente pelas “peças de tese” ou de um doutrinarismo embutido nas falas das personagens – ambas as coisas foram feitas, mas não era o que estava em questão. O fundamental era permitir ao espectador uma atitude de aprendizado ativo, de uma recepção de tal modo que ele pudesse pensar a si mesmo através da cena, através daquele outro no qual a identificação imediata tornou-se impossível dado o efeito de estranhamento.

Contrariamente, em Subybaya, quando a segunda estrutura surge, ela causa uma impressão tão súbita que revela como os elementos anteriores mediaram insuficientemente a relação desta segunda estrutura, que somente agora se presentificou, com o espectador. Até o momento do filme em que as vozes externas modulam a narrativa, não fora exigido do espectador uma atitude ativa diante da recepção da obra. Daí, a impressão resultante é que tais vozes externas avaliam a narrativa com o grau de onipotência que a narração em off historicamente realizou no cinema – justamente aquele “doutrinarismo embutido nas falas dos personagens” ao qual não se resumia o método brechtiano e que faz com que a estratégia da dialética entre ambas estruturas aconteça de maneira quase discrionária.

Dada esta relação ainda que enviesada entre Subybaya e Brecht, em contraposição com as condições discursivas da contemporaneidade, vale ainda questionar esta tentativa de desconstrução do filme em si. Numa carta endereçada à Companhia do Latão, grupo de teatro brechtiano de São Paulo, Roberto Schwarz escreveu que “a dimensão crítica do distanciamento brechtiano deixava de ter o vendo da história a seu favor”. O fato é que estaríamos diante de uma sociedade cuja complexidade transformou-se demasiadamente transparente, na qual já não nos espantamos, por exemplo, quando são publicadas as cifras do lucro líquido dos bancos em tempos de crise e austeridade para a população em geral, pois a desmistificação, relativa ao lugar oculto da economia no rol das coisas, tornou-se um gesto vazio.

Não por outra razão, enquanto Subybaya se pretende um filme que narra uma paródia sobre ele mesmo, o próprio sistema, no estágio contemporâneo, faz isso o tempo todo: “o capitalismo não necessita mais de crença alguma e é apenas da boca para fora que o capitalista se aflige com o fato de que atualmente não se crê mais em nada”, diziam Deleuze e Guattari ainda na altura do Anti-Édipo. Paródia de paródias, e isto continuamente, perpetuamente. Não faz sentido, portanto, acreditar na potência crítica de um “filme de crise” se a própria gestão do capitalismo já não se baseia na teologia do desenvolvimento perpétuo, mas, contrariamente, na chantagem da crise. Ou, se preferirem, em um “filme suicida”, quando o capitalismo já declarou seu próprio suicídio e, se ainda não morreu, morrerá por overdose de si mesmo se não houver oposição.

Ao final, o que resta de Subybaya é uma determinada posição ideológica que porta em si mesma sua própria negação – ou seja, sua própria crítica. Embora o filme ponha em xeque reflexivamente os móbiles que determinam a sua própria ação alienada – “é um homem realizando um filme sobre uma mulher” -, sua forma não ultrapassa o estágio da exposição estrutural do próprio processo de desmascaramento da sua ação alienada – como se não fizesse nada mais que demandar seu próprio assujeitamento na esperança de que deixe de ser sujeitado, ao mesmo tempo que opera sobre um vazio, pois se constitui como uma crítica que opera apartada dos seus fins.

Mesmo quando as vozes exteriores penetram no próprio filme e atuam diretamente nos acontecimentos diegéticos, este gesto não é persuasivo, pois não tem força de envergar completamente a forma: as personagens são novamente expulsas e o filme retoma o seu processo de pura negação cuja consequência é um processo de auto-invalidação que vale por si só – uma certa maneira de perder a validade e continuar válido. O resultado final, portanto, é um desespero conceitual, ou, no pior do casos, uma forma paradoxal de estabilização na anomia. Afinal, realizar a sua própria impossibilidade é, ainda assim, uma forma paradoxal de realização – paradoxal porque, como explicou o filósofo Vladimir Safatle, “o paradoxo deriva do fato de uma concretização aparentemente contrária à intenção que a gerou poder ser adequada a essa mesma intenção”, em que a identificação deste regime de contradição não é capaz de desqualificar a concretização paradoxal da intenção.

Por mais que o filme dentro do filme seja fictício, o filme, enquanto tal, não pode deixar de ser verdadeiro, pois toda obra constitui um regime discursivo efetivo. O problema está, portanto, no nível da verdade de Subybaya, cuja crítica é fragil diante da dinâmica de organização das formas de vida atuais – talvez, o olhar ambíguo daquela garota, que apenas observava enquanto as demais colegas socavam o diretor e o próprio olhar da câmera (ou seja, nós, espectadores), já insinue esta descrença que deve ser erguida contra a própria descrença do filme com relação a si mesmo.

Contra este tipo de postura, o pesquisador Cézar Milgiorin apontou que “o problema é que, provavelmente, aqueles que tendem para ao desespero já o alcançaram, levando ao limite as forças negativas e as eventuais potências do não”. Em meio a uma sociedade cuja crise de legitimidade é marcada pela tendência à generalização de situações de anomia e indeterminação – situações estas definidas como “os efeitos de um enfraquecimento das normas e das convenções tácitas reguladoras de expectativas mútuas que conduz a uma degradação dos vínculos sociais”,segundo os estudiosos Luc Boltanski e Eve Chiapelo – é preciso uma crítica produtiva feita a partir deste desespero, capaz de apontar para uma percepção do presente em conexão intrínseca com a potência de vida em disputa, para além deste esvaziamento da fala do qual não podemos ir além (daí a ideia de um “desespero conceitual”) e que favorece somente a posição melancólica de quem só acredita no isolamento e na fraqueza dos sujeitos.

Para tanto, precisamos, primeiramente, destravar nossa imaginação política e reinventar o tipo de interpretação que fazemos do nosso desconforto – compreender, sobretudo, que onde está o perigo, cresce também aquilo que nos salva, oferecendo uma nova resposta à experiência de desestabilização do mundo com uma força de síntese capaz de implicar todas as forças reais que estão presentes em nossa situação – tanto o dentro quanto o fora do filme em um só corpo político.

 

*Filme visto na 20ª Mostra de Tiradentes

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