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Inocentes, de Douglas Soares

17/09/17 às 16:33 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Inocentes, de Douglas Soares

É bonita a síntese por trás da introdução de Inocentes. A imensidão infinita do mar ao som das gaivotas e do canto da baleia-jubarte é uma paisagem típica, constitutiva da nossa ideia de litoral. Mas logo se revelam os navios petroleiros no horizonte e, em primeiro plano, surge um homem sem camisa fumando um cigarro. Depois as barras para exercício, na areia. Depois a janela com vista para a praia e para o morro. Sim, estamos no Rio de Janeiro, em Ipanema. Mas já há elementos suficientes para afirmar que estamos na Ipanema de Alair Gomes, fotógrafo de obra forte e singular, que recebe essa bela homenagem do cineasta Douglas Soares (de Contos da Maré).

Assim como na abertura do curta, também é possível recorrer a uma transição do universal ao particular para resumir a importância de Alair. Se a janela é um dispositivo-imagem mais do que óbvio para a fotografia e se todo fotógrafo é invariavelmente um voyeur, Alair elevou esses dois princípios para articular arte e desejo numa dinâmica extremamente íntima, em que fotografava – inicialmente da janela de seu apartamento – os rapazes em trajes de banho, caminhando, fazendo flexões, abdominais e outros exercícios. Engenheiro civil e professor, só começou a fotografar artisticamente aos 45 anos. Teve sua primeira exposição 18 anos depois, e nesse meio tempo deu aulas na EAV do Parque Lage, fundou a revista Magog e produziu mais de 150 mil fotos, a imensa maioria retratando corpos masculinos, no que talvez seja o catálogo mais relevante (em quantidade e qualidade das fotografias) dentro da arte homoerótica.

Para evocar uma obra em que o personagem é sempre a imagem de um corpo, a composição do elenco de Inocentes faz jus aos garotos de Alair. São figuras vitruvianas, na plenitude da condição física, mas livres de qualquer exagero e da desproporção de músculos exaltados. Nas sequências, o sofrimento inerente ao esforço físico é solapado pela alegria e prazer, evidentes principalmente no antes e depois da atividade, quando trocam cumprimentos, sorrisos e palavras – que não ouvimos, pois disso a teleobjetiva de Alair não era capaz.

Muito mais do que reproduzir com dignidade o universo temático das fotos de Alair (várias das cenas emulam fotos famosas), o grande mérito de Inocentes é nos sensibilizar quanto a uma qualidade essencial a este voyeur: a fantasia. A despeito da precisão e até do formalismo de sua estética fotográfica, esta observação obsessiva não tem neutralidade científica; Alair era ele próprio um corpo sedento por prazer, desejante dos objetos de sua arte.

A inserção da canção Oh, Sister (Bob Dylan), um cântico sobre carência afetiva, e de uma série fotográfica do próprio Alair sobre o Carnaval carioca são índices que ilustram a convicção com que o protagonista assumia a busca pelo prazer enquanto um valor maior. Sobre as imagens dos homens de Ipanema, ouvimos os sons de uma cena de Mulheres Apaixonadas (Women in Love, filme de Ken Russel), na qual há uma luta entre dois homens nus. Os gritos e gemidos da luta são mais uma contribuição ao universo sugestivo que Douglas Soares ergue para aludir ao apetite voraz do fotógrafo.

Outro braço da fantasia exposta diz respeito à própria transmutação do observador em objeto. Aqui o conflito é aquele imortalizado pelo famoso quarteto de Camões: “Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar; não tenho logo mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada”. A voz em off (interpretada por Marcos Caruso) dá a linha: “…Se despediram com um aperto de mão que eu senti como se fossem as minhas, depois trocaram o telefone e eu fiquei na espera que o rapaz me ligasse”.

Talvez também por essa magnitude de fantasia e desejo, Alair seja um dos fotógrafos mais cinematográficos que já tivemos. Há uma miríade de fotos brilhantes em sua autonomia, mas ele gostava mesmo era do movimento, da narrativa possível por meio da junção de diversas fotos, como acontece na série A Não História de um Chofer (1975) e em várias outras. É como se Alair sempre imaginasse uma trama, da qual as fotos contemplam só uma parte. Na outra parte, não registrada, muitas vezes era ele o personagem central, como quando passou a convidar os garotos para ensaios fotográficos no seu apartamento. Há um caminho virtuoso entre o nascer do desejo e sua consumação, representada por uma belíssima sequência final. Alair gozou de todas as etapas. Inocentes honra essa memória.

 

*Inocentes integra a mostra competitiva de curtas-metragens do 50º Festival de Brasília

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