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Hotel Cidade Alta, de Vitor Graize

27/01/17 às 10:41 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Hotel Cidade Alta, de Vitor Graize

Não é gratuitamente que o realismo, no sentido clássico do termo, é o apanágio do cinema. A força da novidade trazida pelo cinematógrafo, através do seu mecanismo de apreensão do real em estado bruto, naturalizou uma estética dita realista ao conformá-la como a mais adaptada para a expressividade tão própria ao cinema – ainda que as aparições de alguém como Meliès antecedam o convencionalismo de Griffith e o radicalismo de Bazin.

Para além da mímese da realidade enquanto base estrutural da mise-en-scène, a fuga do realismo traz consigo o imperativo da eleição de um novo fiador para os procedimentos formais do filme. A quebra da regularidade da forma realista é acompanhada da necessidade de determinação de uma nova gramática que organize o filme, a menos que o filme se lance na quase desagregação completa dos filmes experimentais, o que inclusive justifica o comentário dos curadores da 20ª Mostra de Tiradentes escrito no catálogo – a respeito do curta Hotel Cidade Alta, de Vitor Graize, integrante da mostra Panorama – quando diziam que o filme não se adequava às tradições do cinema experimental, por mais que se valesse de operações que não deixam de ser experimentais.

No curta em questão, o próprio título explicita o denominador comum dos procedimentos maneiristas do filme. Em Hotel Cidade Alta, é uma singularidade (um hotel) que determina a generalidade da forma. O que significa, portanto, talhar uma forma pelas particularidades semânticas de um hotel? Não um hotel qualquer, mas um hotel como o Cidade Alta.

Vejamos. Por um lado, a proto-monumentalidade destes hotéis, localizados no centro das capitais, tornam-os lugares característicos, marcados pela fixidez, os principais pontos de referência de um espaço urbano frisado justamente pela multiplicidade cambiante dos estabelecimentos e edificações. Esta caracterização se fundamenta em elementos como os traços específicos da forma arquitetônica dos hotéis, a longevidade destes em um mesmo endereço, o soar conspícuo do nome próprio dos hoteis (leiam em voz alta: Hotel Cidade Alta), elementos estes que configuram o sentido particular da presença de um hotel numa determinada região. Não obstante, por outro lado, a dinâmica interna destes espaços é posta pelo movimento de entrada e saída de hóspedes – check-in e check-out – que reatualiza continuamente as presenças que habitam aquele interior. Daí, a dialética contínua entre determinação e indeterminação.

Postas tais caracterizações, Vitor Graize funda a narrativa a partir desta clivagem dos sentidos. Partindo do hotel localizado no centro de Vitória, o filme inicia-se como um documentário somente para, logo em seguida, transfigurar-se numa forma rebuscada que embaralha a lógica realista (gesto cerimonial dos personagens, rarefação narrativa, diálogos que não se organizam em torno de um eixo dialógico). Os signos assumem tanto a fixidez que definem a parte mais visível dos personagens – a cor e a classe social do ex-morador de rua, todo o passado anotado no caderno do empregado do hotel, a relação enigmática do fotógrafo com a filha – quanto a fluidez das significações, postas em circulação pelo movimento da mise-en-scène que distorce os significados primeiros dos personagens, levando-os à expressão de sua própria fragilidade.

É por isso que o velho fotógrafo deita no colo da funcionária do hotel que nunca viu o dono, encarnando a figura de um filho quando anteriormente aparecia representando a figura enigmática do pai perante a filha. O ex-morador de rua, mesmo que tenha saído da rua, continua no sub-emprego de flanelinha – mais sobrevivendo que vivendo, como ele mesmo diz – e ainda assume os comportamentos contraditórios de dono daquele espaço quando encara o fotógrafo na escadaria. Por último, o empregado do hotel, por mais que tente registrar a exatidão estacionária do tempo ao escrever incansavelmente em seu diário, é desafiado pela atualização e consequente abertura para transitividade dos sentidos quando o diário é lido por um outro alguém – se este alguém lê em voz em alta, é para que nós também possamos escutar.

Sem limitar-se aos personagens, a força de confrontação política do filme ainda é posta pela ressignificação da cidade de Vitória. Apresenta-se, primeiramente, Vitória em seu presente aparentemente consolidado através de uma sucessão de imagens, filmadas durante o próprio processo de feitura do filme, que narram a cidade. Para polemizar o significado desta representação, o filme apresenta fotos antigas de Vitória que supostamente são aquelas que o velho comentou com a filha que estava expondo na cidade. Esta contraposição atua como um revisionismo histórico heterodoxo que desautoriza os significados imediatos daquelas imagens contemporâneas de Vitória ao revelar um passado que complexifica decisivamente o presente, somado pela sequência em que o ex-morador de rua caminha pela procissão religiosa enquanto narra a violência perpetrada contra os negros e indígenas naquele lugar; violência, sobretudo, oculta, e este gesto de ocultamento é uma operação do poder como aquela dos habitantes do hotel que fecham o chuveiro com um alicate. A ideologia é como um alicate.

Ainda assim, o que parece faltar ao filme, a despeito da inversão dos significados que a forma é capaz de efetuar, é admitir um certo grau de descontrole mesmo em sua condição de ficção: um plano, um gesto, uma ação peremptória, desta pela qual subitamente tomamos um alicate da mão de alguém ou subvertemos um arranjo ficcional cuja estruturação tão rigorosa corre o risco de impregnar a cadência dos planos, precipitando um certo esquematismo e automatismo que amputa a mise-en-scène, assim como as possibilidades dos personagens, já que rupturas se tornaram impensáveis.

Existe uma potência no formalismo de Vitor Graize quando este permite a dissolução dos vínculos entre significantes e significados. Contudo, este gesto de mise-en-scène também distancia, privilegiando o autismo dos personagens enquanto sujeitos apartados de uma confrontação com o mundo. O ex-morador de rua simplesmente passeia inerte no meio da multidão, restando um contato que levasse as relações internas entre os signos ao ponto em que tensionariam uma nova possibilidade de significação para além da fragilização dos vínculos imediatos. Mesmo que o encontro permita a desestabilização das linhas definidoras dos personagens, ficamos à espera de uma reinvenção ainda mais propositiva do encontro entre eles, capaz de transfomar o plano no meio laboratorial onde se ensaiam formas de vida e de encontros, desafiando uma nova maneira de habitar e ser habitado pelo Hotel Cidade Alta.

 

* Filme visto na 20ª Mostra de Tiradentes

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