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Garotas, de Céline Sciamma

30/04/15 às 22:00 Atualizado em 08/10/19 as 20:28
Garotas, de Céline Sciamma

Em Conta Comigo, o personagem Gordie Lachance termina de narrar um inesquecível verão dizendo que nunca teve amigos como os que tivera aos 12 anos. O clássico de Rob Reiner, adaptado de um conto de Stephen King, é um ponto alto do cinema infantojuvenil e um roteiro, entre tantos, que estabelece as férias de verão como recorte temporal propício às transformações da adolescência. De fato, além de ser a época das aventuras e das colônias de férias, o recesso escolar anuncia um momento de expectativas, com um quê existencial, em que o desafogar da rotina permite que se tenha maior consciência da passagem do tempo

Céline Sciamma se apropria desse universo, arranjando-o em cenário para uma crise reflexiva ligada à sexualidade e às questões de gênero. Seu primeiro filme, Lírios D’Água (2007), ambienta em piscinas, vestiários e nos treinos de uma equipe de nado sincronizado o furacão sentimental que toma conta da puberdade de quatro garotas envoltas em desejos conflitantes. Tomboy (2011), uma preciosidade do cinema francês recente, mostra uma menina de 10 anos que se sente no corpo errado e quer muito ser um menino. 

Agora, em Garotas, os mesmos elementos voltam com força: o verão no subúrbio parisiense, o conjunto habitacional como atmosfera social dos protagonistas, o conflito entre o que se é na intimidade e a imagem perante o grupo de amigos. Céline se apoia nessas bases para erguer seu manifesto feminista, potente na representação sensível de personalidades em construção e sóbrio na ilustração das diversas camadas opressoras atuantes sobre as protagonistas.

Marieme (Karidja Touré) é a âncora da narrativa. Mulher, jovem, negra e pobre. Vive em um pequeno apartamento  com sua mãe – que trabalha como faxineira em um hotel -, seu irmão mais velho e duas irmãs mais novas. Não se sabe quem é ou onde está o pai. Na prova geral do Ensino Médio de sua escola, Marieme é reprovada.

Frente a tal conteúdo, é fácil imaginar a cartilha do melodrama guiando a abordagem. Mas não, uma característica comum aos protagonistas de Sciamma é a energia na busca por uma identidade. A dor e a perturbação interna se traduzem numa expressão imaginativa, no caso de Tomboy, e afirmativa, no caso de Garotas. Quando Marieme entra para a gangue de  meninas formadas por Lady (Assa Syla), Fily (Mariétou Touré) e Adiatou (Lindsay Karamoh), o enfrentamento e as dinâmicas de grupo (hierarquia, companheirismo, integração) serão as ferramentas para essa reconstrução de si mesma.

 

Karidja Touré e Assa Sylla em cena. Céline Sciamma , especialista na direção de atores, aposta em elencos desconhecidos e dá ao cinema talentos como esses.

Karidja Touré e Assa Sylla em cena. Céline Sciamma , especialista na direção de atores, aposta em elencos desconhecidos e dá ao cinema talentos como esses.

 

A conexão entre Marieme e as outras se fundamenta na identificação. Por sofrerem agruras semelhantes, aliam-se para a luta, fertilizada pela sensação de acolhimento, pela sororidade. Em alguns momentos, fica evidente que encarar o girl power dá certo prazer e alguma redenção, semelhante às vitórias de uma equipe esportiva ou de um batalhão de guerra. Não por acaso, a primeira cena de Garotas exibe Marieme jogando uma partida de futebol americano, um esporte bruto e competitivo, disputada só por meninas.

Abarrotada de imigrantes, a periferia de Paris é um mundo particular, pouco explorado no cinema europeu, mas, ao mesmo tempo, espelha cultura e organização gerais. Fora dali, o racismo e o preconceito classista resultam na postura excludente que atinge Marieme e suas amigas – que responderão com bravura, como na cena do shopping, quando Lady encara uma atendente que ousou lançar um olhar desconfiado às meninas. Porém, o caráter estrutural do machismo é ainda mais forte, pois a mulher é marginalizada também ali, na sua casa e no seu condomínio, entre seus pares de cor, classe e sangue.

Assim como em Tomboy, o teatro é possível em certos círculos mas se dificulta num ambiente familiar. Marieme se orgulha de suas conquistas com a gangue, mas a volta pra casa inclui encarar a turma de moleques de seu condomínio e, mais severamente, as grosserias de seu irmão, dominante no espaço íntimo. Quando Marieme ganha uma briga de rua, é o orgulho e a aprovação do mesmo irmão que irão realizá-la.

A sobriedade de Sciamma no tratamento das questões de gênero, portanto, se dá ao assinalar que o patriarcado está em todo lugar, depositado na essência de vários comportamentos. Para usar um termo caro ao feminismo, são profundos os obstáculos para uma mulher se empoderar.

No meio da batalha, a gangue de Marieme quer liberdade, em toda a polissemia que o termo comporta. Principalmente, quer a felicidade. Ainda são adolescentes; querem pular em uma cama cantando Diamonds aos berros, numa cena que poderia muito bem estar em Bling Ring, de Sofia Coppola, ou em Spring Breakers, de Harmony Korine.

O apreço estético pela ritmicidade e impacto das sequências é significativo na obra de Sciamma. Ela consegue erguer um tema muito complexo, com subtexto ácido, por meio de um cinema ensolarado, flutuante, com não-atores performando em alto nível. Garotas reforça a assinatura de uma cineasta ainda muito jovem (36 anos), mas que já achou, em seu três filmes, sensibilidade única no retrato da infância e da adolescência.

Nota: 8,5/10 (Ótimo)

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