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Eu, Pecador, de Nelson Hoineff

08/11/17 às 15:47 Atualizado em 08/10/19 as 20:24
Eu, Pecador, de Nelson Hoineff

Duas recorrências saltam aos olhos nas filmagens da recente campanha de Agnaldo Timóteo para o cargo de vereador do Rio de Janeiro que são mostradas pelo documentário Eu, Pecador, de Nelson Hoineff. Ou o cantor aparece esparramado em uma cadeira colocada na parte traseira de uma picape à espera de transeuntes que desejem lhe saudar, ou realiza o chamado corpo a corpo nas ruas da capital carioca, tentando disputar a atenção dos passantes com outros políticos, vendedores e demais pessoas que usam a voz como instrumento de trabalho em ruas movimentadas. A figura de Timóteo é formada em alguma medida pela coexistência dessas duas facetas: em um plano artificialmente elevado está a persona quase imperial do cantor e do puxador de votos que arrastou multidões; em um plano mais terreno, o astro que virou subcelebridade e tenta fazer com que a fama do passado lhe conceda pela sexta vez um mandato parlamentar.

Na opção por abrir o filme com uma participação do cantor no humorístico Zorra Total – na qual o personagem Alberto Roberto (Chico Anysio) o confunde com Agnaldo Rayol – e no zoom out que pouco depois parte do plano fechado de um relógio para o plano aberto de uma estação ferroviária perto da qual o artista realiza sua campanha estão presentes, respectivamente, dois elementos óbvios na trajetória do retratado: o esquecimento e a passagem do tempo.

O cantor popular que aparecia no Fantástico na época áurea do programa foi o deputado federal mais votado do Brasil em 1982. O que justificaria essa nova empreitada? Seria uma realocação profissional já ciente de uma natural decadência no que tange ao sucesso musical? São perguntas que poderiam render bons frutos para Eu, Pecador, mas o documentário se atém na maior parte do tempo a uma rigidez estrutural [não confundir com rigidez formal] que o enfraquece, a começar pela redutora escolha dos três blocos temáticos que dividem a obra e tratam, em sequência, da guinada de Timóteo para a carreira política, da suposta homossexualidade do cantor e da precariedade de sua última campanha política – somada à também recente captura satírica da imagem do cantor por programas como o Pânico na TV.

Mas antes de adentrar o terreno das fragilidades deste documentário é útil relembrar, para efeito de comparação, outro longa-metragem realizado por Nelson Hoineff. Em Alô Alô, Terezinha o diretor recontou a história do apresentador de TV Chacrinha, utilizando-se para isso de procedimentos que supostamente queriam mimetizar o humor ácido do programa televisivo. A atitude do trabalho perante as pessoas entrevistadas, principalmente na relação com as ex-dançarinas conhecidas como “chacretes”, provocou textos de repúdio por parte da crítica de cinema que o assistiu naquela época. Na Revista Cinética, Cléber Eduardo escreveu que o filme “não se auto-sacaneia como fazia Chacrinha. Não revela sequer a voz, as perguntas, os caminhos para se chegar aonde se chega. A instância de narração se apaga em cena e se organiza só na montagem, cujas relações entre cortes nos deixa claros os valores da malandragem a governar essa organização visual”.

É certo que no caso de Eu, Pecador a relação entre entrevistado e entrevistador se dá em um nível diferente, visto que Agnaldo Timóteo é uma figura vastamente talhada para o trato com a mídia. Contudo, o apagamento da instância de narração em cena e a ideia de “malandragem” que transparece em diversos momentos da montagem seguem presentes neste filme de Hoineff e fazem parte de suas limitações. As contradições de Timóteo em temas como política e costumes sociais estão muito mais calcadas em recursos truqueiros (e por isso superficiais) de ordenamento de falas díspares sobre mesmos assuntos – quem seria o maior presidente do Brasil na visão do cantor: Collor ou Lula? – do que pela riqueza do material colhido pelas entrevistas. Um caminho para atenuar esta fraqueza seria colocar-se como personagem e estar disposto a um efetivo confronto de ideias, e mesmo colocando-se à parte da narrativa o diretor poderia encontrar no processo de montagem diversos caminhos para tornar mais complexo o seu filme e o seu personagem.

A questão é que o interesse que Timóteo gera nos espectadores do documentário surge principalmente “apesar de”, e não “devido” às opções da direção e da montagem do filme. As cenas citadas no início desse texto são potentes, apesar de a montagem não diferenciar com mais cuidado as passagens do candidato quando está a pé daquelas em que ele aparece na traseira de um carro; a promoção da auto-imagem e os modos de aparição de Timóteo na mídia (do Fantástico ao Pânico na TV, das TVs legislativas às rádios) são interessantes, apesar de o filme pouco investir no tema; a maneira como o cantor encara a questão racial no Brasil de hoje gera curiosidade, apesar de só aparecer em duas rápidas passagens no filme (“os negros casam com loiras”); as performances antigas e atuais de Timóteo no vocal são absolutamente expressivas, apesar de o filme parecer, principalmente no segundo bloco, ter a intenção de utilizar as canções muito mais para comprovar – através das letras – a suposta homossexualidade de Timóteo do que para exaltá-las artisticamente.

A própria escolha por utilizar a canção-título do filme logo na abertura gera o alerta de que um determinismo moral sobre Timóteo pode ter sido construído antes mesmo de o filme desenvolver seu personagem, estranhamento que só aumenta quando a mesma apresentação é repetida ao fim do segundo bloco temático, antecipando de modo capenga o fim de um ciclo narrativo.

Quando, no terceiro e último bloco, as atenções do filme se voltam novamente para a campanha política de 2016, o interesse por aquele desfecho parece já ter sido quase todo diluído ao longo da projeção – e a própria montagem parece se dar conta de seu caráter desconjuntado quando recorre a uma sequência em que dá fast-forward em imagens da campanha, um recurso precário que deseja fazer com que o espectador reencontre o fio da meada, sendo que o próprio filme já o havia perdido há um bom tempo.

Pois é desse modo que o plano final, que guarda em si um vigor cinematográfico não visto em outras imagens captadas para o documentário, acaba soando como uma simples confirmação de um discurso pré-concebido pelo filme – com o agravante de que o percurso trilhado pela obra até ali faz com que a cena perca seu impacto potencial e se torne apenas desinteressante.

 

*Filme exibido no 10º Festival CineMúsica, na 41ª Mostra de São Paulo e no 19º Festival do Rio

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