Texto de Adriana Gaeta Braga, do Crítica Curta*
Baseado na obra de Augusto dos Anjos e imageticamente impregnado por esse autor, a produção gaúcha Demônios de Virgínia, dirigida por Gabriela Richter Lamas, é antes de tudo visceral. Como na obra do autor, estamos falando de uma protagonista Virgínia (interpretada por Martha Grill) que se encontra no limite da existência. Atriz, transita entre a superficialidade e o vazio dos anúncios publicitários, onde o sorriso é mais um prenúncio de venda, e de uma sociedade calçada no vazio de um consumo fácil, e de seus sonhos como artista.
O sorriso de propaganda de óculos revela mais do que suspeita: nos mostra uma existência em que nada dialoga com a nossa realidade interna, estampa de nosso desespero. Para mergulhar em sua essência, a protagonista se refugia no teatro, onde faz espetáculos que tem pouca ou nenhuma empatia e compreensão do público.
Nessa falta de diálogo entre “o que eu verdadeiramente sou” e o “como vocês me enxergam”, Demônios de Virgínia caminha por vias carregadas de solidão e de desilusões. Como na obra de Augusto dos Anjos, exemplificada pelo poema “O Lázaro da Pátria”, é o corpo da atriz-personagem que sangra as chagas de um renascer para um destino desconhecido, e a dor que disso oriunda é só nossa, indiferente à plateia/mundo que nos circunda.
“Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.
Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes
Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos…
Há um cansaço no Cosmos… Anoitece.
Riem as meretrizes no Cassino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!”
O corpo da atriz é devassado por uma câmera que escolhe planos incômodos, invasivos. As angulações causam estranhamento. O inesperado também está presente na ação, por vezes lembrando a imprevisibilidade de um documentário.
De maneira análoga ao poeta Augusto dos Anjos em sua obra “Psicologia de um Vencido”, a câmera busca dissecar a persona/personagem e mostrar os “vermes da alma”, o feio, o anti-herói, fazendo um registro da ruína da alma da protagonista.
É um filme excelente, mas que explode em potência pela força da atriz Martha Grill. Em um importante bate-papo, após a sessão, a diretora revelou que ela está em um concurso de baristas, e que havia desistido da profissão de atriz.
Lembro-me da atriz Renée Jeanne Falconetti, intérprete de Joana D’arc no impactante A Paixão de Joana D’arc, de Carl Theodor Dreyer. A atriz impressionou a equipe técnica de tal maneira que era chamada pelo nome da personagem o tempo todo no set. Após o filme, contudo, a atriz desistiu de atuar. Torço para que Martha Grill, mesmo lançada na fogueira que toda carreira artística nos coloca, possa ressurgir das chamas em estado de graça.
*Crítica Curta é um projeto da Associação Cultural Kinoforum que acontece anualmente no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Desde 2005, o projeto convida estudantes de escolas de audiovisual parceiras do Festival para refletir sobre o curta-metragem e escrever a respeito. Os alunos assistem aos filmes do festival e produzem textos críticos, sob orientação do crítico de cinema Sérgio Rizzo.
Em parceria com a 28ª edição do evento, o Cine Festivais publica alguns dos textos produzidos pelo Crítica Curta. Para saber mais sobre o projeto e ler todos os textos produzidos, acesse a sua página oficial.