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Crônicas de Ouro Preto #3: Fazer ver o invisível

18/06/18 às 13:02 Atualizado em 15/11/19 as 17:03
Crônicas de Ouro Preto #3: Fazer ver o invisível

Andar em Ouro Preto significa entre outras coisas notar uma seletividade de imagens. A arquitetura segue símbolo de autoridade, as estátuas remetem sempre ao poder histórico no controle das narrativas. Não há, em destaque, estatuaria aos inconfidentes, aos revolucionários, aos insurgentes. E isso não é pouco quando no nosso tempo inexistir nas imagens é inexistir por completo. Enquanto escrevo este texto escuto o lindo álbum de Vicente Barreto, “Cambaco”, nome também da primeira faixa, na qual, em dada altura, a letra me diz o seguinte: “o passado às vezes sai do lugar / onde era manada e rouquidão, hoje mercado negro de marfim / onde havia batuta e balafon, hoje é metralhadora a gargalhar”. O sentimento instaurado em mim desde ontem, ecoado nessa canção, encontrou, no entanto, algum afago na sessão que abriu a terceira noite de filmes no Cine Vila Rica

Na Mostra Preservação tive a grata surpresa de descobrir, entre as sessões deste terceiro dia da 13ª CineOP, a obra de um diretor sobre o qual, confesso, nunca havia ouvido falar, mas que com certeza revisitarei sempre que possível. Verso aqui sobre os filmes de Orlando Bonfim, Netto. E como é bom quando um gesto curatorial percebe a potência de um programa de filmes para além de tensões circunstanciais ou mesmo predileções pessoais apenas.

Filho de Orlando Bonfim Junior, desaparecido político em 1975, Bonfim Netto traz em sua filmografia dois traços que considero fundamentais: uma consciência bastante apurada sobre as relações de poder mediadas pela presença da câmera, além de um interesse genuíno pelas pessoas e manifestações culturais que registra, sobretudo em cidades do Espírito Santo.

Entre os cinco filmes exibidos na sessão, falarei mais profundamente sobre os três que de alguma forma respondem à relação entre imagem e existência que abre este texto, e que por isso mais me interessam. São eles: Canto para a Liberdade – A Festa do Ticumbi (1978); Mestre Pedro de Aurora, Prá Ficar Menos Custoso (1978); e Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985). Cada filme tem suas peculiaridades e escolhas próprias, mas nitidamente constroem juntos uma relação de imagens com um diálogo bastante central: no cinema, não basta dar voz, é preciso dar imagens aos invisíveis.

Antes de chegar aos filmes individualmente, a mesma questão que os filmes de Bonfim Netto e que a letra de Vicente Barreto me propuseram proponho agora a quem lê; retórica talvez, mas necessária: em algum lugar do Brasil existem estátuas aos pedreiros? Ou mesmo gravuras aos garis? E pinturas às empregadas domésticas, temos? “Onde era savana e kalundu / hoje é nego roendo o couro cru / onde havia calunga e bonbolon / hoje a mesa ta posta pra urubu”, continua dizendo a voz de Vicente Barreto.

Chegamos em Canto para a Liberdade – A Festa do Ticumbi, que já no próprio título integra seus três eixos principais: o canto literal como forma de expressão; a ideia de festa e de resistência como imagens muito próximas; a ideia da festa como manifestação de pessoal e coletiva ao mesmo tempo. E neste curta essas relações se constroem de maneiras muito objetivas, o que de maneira alguma sugere a transformação de sujeitos em objetos. Mais do que um registro sobre a festa (inserida numa tradição de herança quilombola do interior do Espírito Santo), o filme traz registros de quem faz a festa. E costura por fora ainda outra relação de imagens que se incorporam ao filme (a gravura do período escravocrata que dá lugar a uma fotografia etnográfica e que, por fim, vira um still de um dos senhores entrevistados no próprio filme). Existir na imagem é existir no mundo.

A relação entre Canto… e o seguinte, Mestre Pedro de Aurora, Prá Ficar Menos Custoso, é construída dentro dessa mesma relação, mas num recorte mais pontual: se no primeiro curta as imagens são mais gerais, com planos abertos e geográficos que tentam capturar a expressão cultural como um todo, no segundo o processo é inverso: a partir da figura do cantador Pedro de Aurora o filme dá imagens a sua história e a partir delas passa a ampliar seus campos, registrando primeiro seu íntimo em seus gestos (as mãos em ritmo no tambor), depois também sua família, chegando ao espaço onde vivem, até culminar num belo retrato da pequena comunidade ao som do próprio canto de Pedro de Aurora. Há uma dignidade definitiva na imagem que encerra o filme e que me trouxe novamente a dúvida: haveria, em Ouro Preto, Espírito Santo ou São Paulo (de onde venho), estátuas à Pedro de Aurora, este senhor de idade e de tantas histórias?

“Tem mil anos que a vaca se embrejou / só cambaco ainda relembrou”, diz o último verso da canção de Vicente Barreto. Dessa relação entre imagem e memória caminhamos ao terceiro curta-metragem.

Dos Reis Magos dos Tupiniquim é, entre os filmes aqui citados, o mais experimental, organizado naquela que é sua maior ferramenta nas relações de sentido: a montagem. Interpondo sequências de cenas culturais populares da Vila de Nova Almeida com imagens da restauração do altar da igreja dos Reis Magos, o filme cria tensões sucintas, mas profundas. Os planos gerais servem como localização geográfica e, mais do que isso, da dimensão de tensões históricas dentro de um espaço relativamente pequeno. As sequências de danças e cantos do festejo dão faces e feições (que nos remetem sempre à uma herança negra muito forte) aos movimentos em grupo; as sequências em que um profissional de restauração vai retirando delicadamente, com uma ferramenta, as camadas de partes de um monumento histórico surgem em seguida. As imagens da festa alteram o sentido das imagens do restauro, e vice-versa. Atesta-se então: não há concreto restaurado nem novas tintas que alterem o sentido primário das imagens associadas ao poder. Não há reformulação possível dessas imagens sem sua completa destruição, simbólica ou não.

Pra alterar os sentidos históricos de algumas imagens, só erguendo monumentos a quem matam, a quem fica, a quem desaparece. Só esquecendo dos monumentos tombados e erguendo monumentos aos que tombam. Mas sendo isso, sabemos, impossível, que filmes como os de Orlando Bonfim, Netto (senhor pacato e cineasta complexo) confiram, acima de tudo, dignidade às pessoas e aos movimentos que registram. Que a possibilidade de existir (num sentido muito mais amplo) no campo das imagens sirva como caminho para existir fora delas também, tal como a imagem do “Cambaco”, referenciada no álbum homônimo de Vicente Barreto: “cambaco é elefante velho, que tudo vê e já viu, grande imagem que permanece e que não se deslumbra ao que aí está / Cambaco é um certo cambalear / antigamente antes do mundo surtar”.

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