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Constelações, de Maurílio Martins

06/04/17 às 16:20 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Constelações, de Maurílio Martins

É raro algum comentário sobre o paradoxo interno ao processo de constituição do road movie como um gênero cinematográfico. Enquanto, na virada para a segunda metade do século XX, as highways eram traduzidas pelos expoentes da cultura americana como a expressão mais autêntica de liberdade – uma liberdade que ganharia corpo à medida que os sujeitos despencassem nas altas velocidades das estradas para dar vazão aos anseios que a modernidade encomendava -, a inscrição cinematográfica desta atitude moderna foi heterodoxa, realizada com uma dose insuspeita de desconfiança que confundia o ideário moderno com as frustrações de uma geração para a qual o sonho não se realizou. Em filmes como Sem Destino, Plunter Road e Corrida sem Fim, a representação do imaginário da estrada esteve fundamentalmente cindida entre a utopia e a distopia, a promessa de liberdade e a tragicidade da impossibilidade violenta.

As ressonâncias desta história do cinema estão presentes em Constelações, curta de Maurílio Martins, seja nos ruídos dos pneus sobre o asfalto que indicam tanto o caminho percorrido quanto o vazio do espaço em que o som ecoa; seja no odor de gasolina que entra no nariz e desentope o passado, criando a forma do filme pela intersecção entre o mítico e o prosaico, a utopia da nostalgia e a distopia da lembrança crua.

No já citado Corrida sem Fim, road movie de Monte Hellman, a aparição a bordo da personagem feminina significava a relativização do movimento, quando finalmente os dois personagens principais cogitavam interromper o movimento perpétuo na estrada. Em Constelações, contrariamente, a estrangeira é a presença que desencadeia o movimento – não do carro, porque este remete ao imobilismo, como na distopia dos road movies americanos, avançando na escuridão sem fornecer a imagem crível do deslocamento espacial, mas do fluxo das memórias, deste passado que condiciona e organiza as ações dos personagens no presente, tornando este presente uma abstração assim como o volume do carro desmaterializado na escuridão da estrada com as luzes dos outros veículos atravessando como cometas.

Nesta abstração, os personagens, o condutor e a passageira que viaja de carona não têm nomes. Contudo, mesmo que não se apresentem, a fuga deste regime mítico de abstração só vai se dar quando eles se aproximarem, pois só assim o passado poderá readquirir a efetividade através da rememoração – a liberdade definitiva destes dois passa pelo acerto de contas com o passado. O caso é que a distância inicial entre eles não está apenas na superfície mais aparente do mundo – a inabilidade dela para o português, a cor do cabelo e da pele que sugerem uma outra ascendência.

É, sobretudo, na maneira da câmera observá-los que esta distância é tanto posta quanto ultrapassada. Inicialmente, a montagem põe ambos os personagens em espaços delimitados, em planos exclusivos para cada um. Mesmo quando compartilham o plano, há algo de incongruente naquela partilha: a cadeira dela está mais para frente que a dele, e esta pequena impressão já é capaz de imprimir sensivelmente o distanciamento.

Finalmente, a câmera lateral filma os dois na mesma altura, lado a lado, cúmplices daquela noite, do ursinho Pimpão, dos desvarios que as estrelas não iluminam – não é à toa que este plano é imediatamente posterior ao momento com os policiais – dos quais não vemos os rostos como nunca vimos os daqueles responsáveis pelos assassinatos nas ações truculentas da polícia -, como se a impossibilidade de comunicação entre eles exigisse um gesto que desafiasse a lógica do presente, a integridade em manter-se fiel ao transporte dela mesmo diante dos policiais.

Dentro do carro, os personagens são filmados tão hieraticamente a ponto do filme indecidir continuamente entre o semblante documental e o monumental, ao mesmo tempo em que estão fixados em si mesmos pelo contraste acentuado entre luz e sombra, talhando uma representação cuja vocação de estaticidade da fotografia convive em contradição permanente com o movimento do carro.

O par de olhos dos personagens desacatando o breu, uma luz nos rostos, mas que não vem de lugar nenhum – fora do carro, apenas a escuridão do espaço abstrato – uma luz emitida pelos próprios corpos – basta olhar quando ele sai para falar com o policial e a ausência completa de luz em sua cadeira – corpos possuidores de luz própria como as estrelas – daquelas cujo brilho revela uma concentração de tempos – ainda acesos porque ainda havia algo em seus interiores que precisava ser confidenciado, algo reminiscente de um passado escuro, mas cuja rememoração propagaria a luz: ao final da conversa entre os dois, o fade entre os momentos da narrativa explicita esta transição do escuro para a luz.

Quando, após se aproximarem, finalmente dialogam, o longo plano de diálogo entre os dois personagens revela, mais uma vez, esta capacidade incomum de Maurílio, já evidente em seu curta anterior (Quinze), em estruturar a narrativa a partir de longas cenas de diálogos – momentos que marcam a irrupção do regime afetivo entre os personagens – sem que a duração destas atrapalhe o ritmo do filme, nem o torne muito pesado, calcado excessivamente na palavra.

A intersecção entre o prosaico e o singular, em Constelações, está nesta configuração em que os personagens são apresentados segundo um modo de representação que abstrai algumas determinidades fundamentais, diluindo o espaço e o tempo em um estado mítico, ao mesmo tempo que as narrativas pessoais dos personagens, fraturadas pelo paradoxo intolerável da contingência materializada em fatalidade, expõe uma mundanidade absoluta, um presente feito de memórias que não são domesticáveis por abstrações e que constituem os momentos com a força seca e intrusiva do que ainda não morreu, embora sobreviva sob outra configuração (outro país, outro namorado), como a gravidade que desafia a altura das estrelas.

Faltava ainda, no entanto, realizar o cruzamento definitivo entre o mítico e o prosaico, tornando-os indistinguíveis, ponto no qual nasce uma nova forma. Por mais que ele admitisse e fosse capaz de verbalizar o medo que sentia da água, ainda permanecia protegido da chuva dentro do carro. Faltava-lhe, sobretudo, a compreensão de que a água do choro é mais corrosiva que a da chuva. Até então, os pingos da chuva caíam sobre o carro e víamos a sua imagem manchada pela água nos vidros. Ainda assim, não o víamos realmente molhado.

Enquanto, para ela, a questão era a travessia sobre as águas – cruzar o oceano para encontrar o pai -, para ele, a questão era se molhar, estar efetivamente dentro da água, não apenas enquanto um método terapêutico contra o trauma do acontecimento passado que ele narrou para ela, mas como uma resposta ao presente, ao peso da voz da sua ex-mulher que enverga a realidade à medida que revela que seu novo namorado está ao seu lado. Assim como não vimos o rosto do personagem, mas escutamos a sua voz, acontece o mesmo com a sua ex-mulher – são os fantasmas que assombram a vida dele, o policial cuja violência sistemática é explicitada quando se refere a ele dizendo “um cara como você” e a ex-mulher que evita qualquer assunto que exceda as questões relativas à filha de ambos.

Assim como ocorre em outro curta recente do cinema brasileiro, Sem Coração (de Nara Normande e Tião), é pelo efeito da água que ocorre o transbordamento narrativo de Constelações, quando o prosaico e o mítico se fundem – ou melhor, se afundam, efeito fantástico presente em outros curtas mineiros, próximos do universo do também mineiro Murilo Rubião, como Quintal (André Novais Oliveira), Mundo Incrível Remix (Gabriel Martins) e Teacher (João Toledo).

Já em Quinze, curta passado de Maurílio, existe um procedimento semelhante: durante todo o filme, o prosaico (os problemas financeiros) convive com o mítico (os planejamentos para a festa de 15 anos da filha), transbordando ao final no momento em que estes se cruzam quando Raquel vai de carona (prosaico) para a festa de 15 anos da própria filha (mítico) e irrompe a valsa.

Em Constelações, o personagem leva o medo (prosaico) para se afundar (mítico) – literalmente se afunda, pois é o próprio corpo do personagem que entra inteiramente na água. Se, após a sua descida, o olhar da câmera sobe e não vemos mais o personagem nem o caminho que ele abriu na água, é porque ali começa a verdadeira viagem.

 

Leia também:

>>> Entrevista com Maurílio Martins

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