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Certas Mulheres, de Kelly Reichardt

07/11/16 às 11:49 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Certas Mulheres, de Kelly Reichardt

O novo longa de Kelly Reichardt entra para a sua lista de road movies e complementa o mito da viagem ao oeste americano, povoando-o por mulheres fortes. Nesse sentido, Certas Mulheres traz crônicas sobre figuras femininas que estão sempre a ultrapassar as barreiras dos folclores que as perseguem, dando ao filme uma dimensão política forte, especialmente no contexto de seu lançamento.

As três histórias selecionadas da literatura de Maile Meloy possuem importante representatividade de mulheres trabalhadoras, todas reunidas na cidade estadunidense de Livingston, em Montana. A seleção de Reichardt parece cuidadosa e suas personagens têm espíritos livres em comum, mas sob a pressão do julgamento das suas escolhas. Observar trajetórias morais, profissionais e afetivas se cruzarem silenciosamente no cinema da diretora é testemunhar a simbiose astuta entre câmera, crônica literária e momento político.

No “Oeste Selvagem”, muitos desbravadores de fronteiras fizeram fama na história e ficção norte-americana. Entre eles, as figuras de cowboys, mineiros e fazendeiros destacavam-se por povoarem os contos de conquista e jornada em busca de fortuna. É fácil relacionar as personagens de Reichardt aos protagonistas do Wild West, porém com o acréscimo da condição feminina imperativa que durante todo o filme torna a jornada mais multifacetada, em busca da libertação frente a uma tradição machista e duradoura.

Se Wendy e Lucy (2008) já resgatava o mito do oeste americano e sua jornada pela fortuna, Certas Mulheres parece fazer contrapontos a essa mesma mitologia e, principalmente, aos personagens que a habitam. Da premissa do filme, acompanhamos essas mulheres pela jornada que encontraram, muito mais do que por aquela que esperavam ou deveriam ter encontrado.

Laura Wells (Laura Dern) é advogada e sua presença no filme é relacionada à prisão e à justiça. Porém, sua posição de autoridade é colocada em xeque com frequência pelos abusos de seu cliente, que a vê como uma figura cuidadora, quase materna. A diluição de sua autoridade marca muito a desigualdade de gênero da sua profissão. O papel que cumpre socialmente acaba sendo muito maior, complexo e cheio de obstáculos, como não previra.

O mesmo acontece no caso de Gina Lewis (Michelle Williams), análoga à figura do mineiro (“imagina quanto deve haver enterrado aqui debaixo” é uma de suas falas, quando aponta para uma pilha de pedras do vizinho que poderá servir para a construção de sua casa). Ela é subestimada na sua posição de liderança profissional e, por conseguinte, familiar; suas iniciativas são atropeladas pelas falas dos homens “tradicionais” e sua filha antagoniza-a sem motivos explícitos.

Na mesma linha, Jamie (Lily Gladstone) é a fazendeira destinada à reclusão social, principalmente depois de exibir seus afetos por Beth (Kristen Stewart), instrutora de direito que assume a profissão de professora para fugir do seu destino de vendedora de sapatos, trabalho que considera indigno e herdado pela sucessão de fracassos da linhagem de mulheres de sua família. Até quando vão considerar os trabalhos feitos por mulheres indignos? Esta sim é uma herança que impregna o pensamento de muitos e muitas.

As mulheres de Reichardt podem ser grandes desbravadoras de fronteiras como os personagens do “Oeste Selvagem”. Porém, elas diferenciam-se fundamentalmente pela constituição feminina, uma vez que a herança que aquelas figuras históricas deixaram é, na maioria das instâncias, exclusivamente masculinizada. No fim, ambos não compartilham muito senão seu ímpeto desbravador.

Certas Mulheres vai muito além da busca pela riqueza dos homens ao enfrentar o mito da maternidade, a pré-disposição para com a liderança feminina e a norma sexual. Sua busca é mais libertária e significativa, gerando resistência de forte potencial opressor.

Os planos do filme pretendem ser espaços abertos para o pensamento e atuação de personagens enquanto reforçam a perspectiva das mulheres: assistimos Laura ouvir a contragosto o desabafo de seu cliente como uma criança pedindo atenção; assistimos Gina repetidamente ser marginalizada da conversa com seu vizinho, que se recusa a encontrá-la com o olhar ou aceitar o poder de decisão que ela exerce.

O realismo do tempo na tela faz o filme de Reichardt silenciosamente inserir os seus temas sob uma perspectiva estética particular. Assim, como é marca da diretora, o realismo de suas cenas faz personagens extremamente complexas, e o mosaico que constrói neste filme chama atenção para seus diversos níveis, destacando uma estrutura que oprime a jornada das mulheres pela fortuna e, mais ainda, pelos direitos iguais.

 

*Filme visto na 10ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte

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