A primeira impressão que me tomou ao assistir ao curta-metragem Calma, de Rafael Simões foi a de enxergar ali uma chave promissora de desajuste para a tradição formal de um voyeurismo da violência que estrutura o olhar brasileiro quando direcionado às quebradas, num fenômeno pós anos 90 (pós Candelária, pós Carandiru). Mas, entre conversas após as sessões e um questionamento surgido durante a premiação, uma dúvida sincera me toma, e é apenas a exposição dela que consigo elaborar neste texto. Chegamos então ao questionamento: o que exatamente significa para um filme como esse ser tão bem compreendido e assimilado pelo Júri da Crítica da Mostra de Tiradentes (que o premiou como o melhor trabalho da Mostra Foco)?
O dilema propositivo de Calma reside na questão de que, se entendemos o filme como um desajuste ao modelo formal sensacionalista de retratar as periferias, não é possível ignorar que o curta carioca transporta essa recusa de modelo para o ajuste a um outro modelo formal bem estabelecido (e legitimado) em mostras e festivais. Entre desajuste e alinhamento, convém posicionar, hoje, o que seria uma radicalidade formal.
Nesse dilema entre habitar dois modelos de cinema bem organizados (em maior ou menor grau nocivos a determinados grupos), Calma parece mesmo querer provocar certa distorção de valores estéticos (entre uma estética da pobreza e uma estética rigorosa), mas nesse movimento parece não forçar ao máximo seu limite, suas referências, freando seu próprio impacto.
O processo de produção de Calma prova em tela seu talento ao ser capaz de fazer com certa facilidade o que a tradição formal de um cinema estabelecido como vanguarda faz há tempos. Pensando, porém, sobre a possibilidade de formular um modelo de cinema que embaralhe a convenção das linhas opostas entre estética da pobreza e estética da arte, que bagunce as fronteiras entre cinema de autoria e cinema popular (bagunça à qual filmes como Café com Canela e A Retirada para um Coração Bruto parecem abraçar com mais fervor), e sendo este texto fruto muito mais de conversas e impressões compartilhadas do que de uma visão pessoal, encerro com um diálogo aberto e uma dúvida sincera: se o olhar hegemônico produz imagens que não mais interessam, até que ponto formular respostas estéticas assimiláveis a este mesmo olhar faz sentido?
*Filme visto na 21ª Mostra de Tiradentes