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Borá, de Angelo Defanti

19/11/17 às 16:30 Atualizado em 08/10/19 as 20:24
Borá, de Angelo Defanti

Odorico Paraguaçu na era da pós-verdade

 

Borá, no interior de São Paulo, por muito tempo ostentou o título de município brasileiro com o menor número de habitantes. Tal fato ajudou a localidade a ir atrás de outra marca: ter 100% dos habitantes cadastrados no Facebook. Tomando como premissa essas duas curiosidades sobre a cidade, o que o filme homônimo de Angelo Defanti propõe é em alguma medida uma segunda catalogação, agora não mais baseada na inscrição de pessoas em uma rede social, mas sim no registro espacial daquele lugar.

Há um post famoso nos idos do Orkut em que um rapaz se vangloriava por ter “descoberto” que o Google Street View não transmitia ao vivo as imagens de sua rua. Por mais risível que seja essa mensagem, havia junto àquela ingenuidade um diagnóstico da inevitável incompletude das ações que visam apreender o todo de qualquer realidade em transformação – seja ela a demografia de uma cidade ou a vista panorâmica de ruas do mundo todo.

Borá demonstra ciência dessa limitação através da dicotomia presente em sua construção formal. Os planos sempre fixos remetem a um referencial fotográfico, enquanto a montagem mimetiza a experiência de usuários que navegam de uma imagem a outra em redes sociais como o Facebook ou o Instagram. Por outro lado, há o movimento próprio ao cinema, por vezes notado apenas pelo breve balançar de uma árvore. É através desse segundo elemento, em conjunto com o trabalho de som, que o filme recusa a ideia de uma catalogação quase turística, pela qual o acúmulo de fotos resultaria tão somente em uma síntese redutora e totalizante sobre a cidade.

Desse modo, o ordinário e o extraordinário coabitam cada plano do curta, uma escolha que dialoga com a narração que permeia a obra. Nela o prefeito da cidade, às vésperas da eleição municipal, se dirige aos eleitores através de um post do Facebook em que se defende de acusações feitas pela candidatura da oposição. Uma das ideias defendidas por ele é que a modernidade trazida pela internet acabou com o isolamento da cidade. É como se uma suposta pureza advinda do baixo número de habitantes tivesse se esvaído quando tal fato passou a ser usado como ativo publicitário.

Borá pode perder de uma hora para outra o “título” de cidade brasileira com o menor número de habitantes, mas não há retorno possível com relação à inserção digital. Daí vem o fato de o conflito revelado pelo post do prefeito refletir tão bem todo um estágio global em que o ruído comunicacional impera e no qual “fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”, como é definida a chamada pós-verdade.

Nesse sentido, o filme não adere a nenhum dos discursos apresentados pelos políticos e atua justamente para acentuar uma dificuldade muito contemporânea de filtragem do grande número de informações que nos são apresentadas a cada dia. O fato de o texto escrito pelo prefeito em um post do Facebook ter sido retrabalhado para o filme em conjunto com o escritor Daniel Galera também é uma amostra de como o documental e o ficcional se afetam o tempo inteiro, sem deixar espaço para serem enquadrados de modo muito preciso.

A voz eloquente do ator que lê a mensagem do prefeito remete a todo um imaginário audiovisual brasileiro que tem na figura de Odorico Paraguaçu, personagem criado por Dias Gomes, a referência máxima de político desonesto. Enquanto no campo ficcional Odorico tenta de tudo (inclusive um acordo com um matador de aluguel) para conseguir um defunto que inauguraria o cemitério da cidade, no caso da cidade paulista a acusação da oposição é que o prefeito teria envolvimento no misterioso desaparecimento de 12 moradores da cidade (incluindo um acordo com um serial killer), justo no momento em que Borá deixara de ser a cidade brasileira com o menor número de habitantes.

A riqueza do filme de Angelo Defanti se dá pelo modo como ele ultrapassa a mera curiosidade de sua premissa e se deixa atravessar pela complexidade de um Brasil que é ao mesmo tempo inventado e real, arcaico e moderno.

 

*Filme visto na 4ª Mostra de Cinema de Gostoso

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