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Baronesa, de Juliana Antunes

03/02/17 às 13:40 Atualizado em 08/10/19 as 20:25
Baronesa, de Juliana Antunes

Escrever. Apagar. Retomar a escrever. Muito já foi dito sobre Baronesa e assim continuará. É preciso, então, interromper a escrita. Hesitar diante de cada olhar, pois este é o risco de ser redundante. Não confundir proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva da linguagem. Nem reduzir o filme a uma mera representação do mundo ao não se deter sobre o trabalho de formalização, o sentido político da mise-en-scène, as profundas mediações do processo de representação do filme: uma imagem não pré-existe ao mundo nem é uma mera consequência dele.

É preciso pôr entre parênteses, ao menos por um momento, as respostas da diretora e mesmo as falas prontas de quem levantava a mão para questioná-la durante o debate na 20ª Mostra de Tiradentes. Demorar-se no objeto mesmo que as lembranças da sessão já corram pelas beiras do esquecimento. Talvez em um próximo momento, quando a sessão única do festival já não limitar um olhar ainda mais demorado, seja possível dizer mais coisas. No entanto, desde já, é preciso violentar a memória, lembrar das imagens e perseguir seus movimentos, anotar como estas imagens e o mundo ensaiam relações, acoplamentos, distensões, constituindo na própria tecitura do filme os sentidos, tanto morais quanto estéticos. É necessário, portanto, entender como Baronesa funciona (ou não) internamente mediante o ordenamento do real proposto pela sua forma – máxima articulação do estético com o político.

Continuar dizendo, como está sendo, que Baronesa é uma decorrência direta de A Vizinhança do Tigre, é muito pouco – na verdade, quase nada. Significa, sobretudo, não compreender a relação profunda de filiação e transmissão entre as obras que está para além do fato de Affonso Uchoa ter montado Baronesa ou de Juliana ter composto o Júri Jovem que premiou Vizinhança em 2014. No pior dos casos, foi dito que Baronesa era a versão “feminina” e “adulta” do filme de Affonso, como se não existisse, no caso destes filmes, uma relação absoluta do conteúdo e da forma, uma dialética em que o conteúdo não é senão a inversão da forma em conteúdo e, na mesma medida, a forma não é senão a inversão do conteúdo em forma. Tanto para Baronesa quanto para A Vizinhança do Tigre, forma e conteúdo são idênticas e, por isso, impossíveis de serem nivelados sob a mesma sintaxe.

É necessário, então, desvencilhar-se deste elenco de ideias que entificam o filme a priori e, sob o risco do desacordo, mensurar se a superioridade absoluta do filme entre os que disputaram a Mostra Aurora deve-se não somente à inegável fragilidade dos demais filmes, mas, sobretudo, ao funcionamento interno do próprio filme, ao acordo profundo entre os procedimentos formais do filme e a construção de determinados sentidos sobre o mundo.

 

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Quando Baronesa começa, aquelas vidas já estão em pleno curso. Mais do que apresentar Andreia, Leidiane e Negão em sequências com finalidades dramatúrgicas explícitas, estruturando uma hierarquia no modo de exposição daqueles personagens em função do passado ou do futuro, importa mais a intensidade particular de cada registro, o sistema de produção de afetos no interior dos planos. A ética da imagem está acima da moral da narrativa, e, assim, as experiências do cotidiano vão se somando sem que esta aritmética seja a da eficiência narrativa (com exceção dos poucos planos em que Andreia está trabalhando).

Não se trata, por exemplo, de marcar os personagens, já de antemão, com o duplo selo da criminalização e do miserabilismo e utilizar os dramas próprios a estes termos como propulsores da narrativa. O filme acredita que aqueles personagens são irredutíveis às explicações generalizantes e, em vista disso, opera-se por um modo de representação que se desdobra imanente ao presente: não há uma ênfase ao passado a partir de rememorações e mesmo a expectativa posta pelo desejo de Andreia em se mudar para Baronesa e pela espera de Leidiane pelo retorno do marido preso não é condição suficiente para estruturar uma dramaturgia (no sentido clássico do termo). Por mais que as próprias circunstâncias materiais da Vila Mariquinha, bairro em que vivem as personagens, evidenciem a identificação daquelas pessoas com o dano causado pelas desigualdades da vida social, o objetivo não é somente tornar aquela situação inteligível enquanto efeito de certas causas (a pobreza, o miserabilismo, a desigualdade). Uma vez que os personagens estão em cena, o filme permite que eles dramatizem a singularidade das suas relações com o mundo. Andreia, Leidiane e Negão compartilham colchão, banheira, carta, segredo, para além das injunções de uma narrativa exterior aos planos.

Nestes momentos, em que temos a sensação de acompanhar um presente irrepetível e inapreensível, o processo de subjetivação dos personagens e a reinvenção do cotidiano não é o mesmo daquele dos personagens da A Vizinhança do Tigre. A reinvenção de si não é efetuada pela fabulação, matéria-prima do imaginário daqueles adolescentes de Contagem, mas pelo prazer, capaz de atualizar a riqueza sensível daquelas vidas, para quem uma caixa d’água se transforma numa piscina, qualquer degrau serve como assento e cada brecha no cotidiano como um momento para uma cerveja; a mãe se transforma em criança, a relação do corpo consigo mesmo é erotizada e o gozo deste torna-se independente do outro. Gestos cotidianos, tão ordinários quanto extraordinários, que se desdobram de si próprios e em si próprios.

Mesmo se, como acontece em raros momentos, verifica-se algum descompasso na encenação dos personagens – seja pelo nível da fala, a eleição dos conteúdos ou por alguma aparência de desconforto -, a insinuação do distanciamento entre quem filma e quem é filmado é logo abolida pelas possibilidades de vida que ressoam na fala seguinte, pela potência de reinvenção que algum outro gesto dos personagens libera. Para este efeito, vale aquilo que o filósofo Jacques Rancière dizia a respeito do cineasta Pedro Costa: Juliana “instalou-se nesses lugares para aí ver viver os seus habitantes, ouvir-lhes a palavra, apreender-lhes o segredo”. No entanto, um segredo de outra ordem. Juliana não está simplesmente restituindo um regime de visibilidade à vida daquelas personagens, nem transformando a suposta precariedade daquelas vidas em objetos artísticos (nota-se, inclusive, o rigor na anulação de uma beleza plástica dos quadros). O segredo está em acessar a reserva de alteridade que não se reduz às marcas sociais – por isso, aquilo que se mostra é segredo apenas para um ponto de vista distanciado e burguês que não aprende que, como disse o pesquisador César Guimarães, “é preciso tão somente acolher essa indiferença da vida cotidiana, que não guarda segredo algum, que nada pode revelar, pois nada esconde”.

Não é à toa que os personagens cheiram cocaína sem que este gesto encerre segredo algum. Os personagens não simulam algum ritual de consumo da droga, e não há um corte que interrompa o plano antes do ato inalatório. Cheira-se a cocaína com a naturalidade de quem vai ao banheiro. E, se nesta ida ao banheiro, a mãe encontra a criança em suposta atividade obscena com outra e – este é o ponto fundamental – a montagem decide manter o plano em cujo prolongamento a mãe contesta violentamente a atitude da criança, esta violência adensa a complexidade daquelas personagens na mesma medida em que aflige a nossa sensibilidade, tornando impossível uma total adesão, uma vez que rompeu-se a integridade dos vínculos afetivos com aquelas mulheres.

Uma violência que, vale dizer, não é dada ao espetáculo. Por mais que se possa questionar o risco voyeur deste olhar do filme, inquirindo a respeito do efeito da exposição daquelas pessoas, o que se deve observar nesta relação entre o filme e aquelas personagens é ainda mais complexo: em Baronesa, o olhar, somente por conjugar uma “cumplicidade sem condescendência em relação às pessoas filmadas”, como escreveu o Júri na justificativa do prêmio, é capaz de tensionar o “enfrentamento de estereótipos apaziguadores da boa consciência” ao sobrepor estas camadas mais cruas das personagens aos momentos em que a alegria e o prazer parecem gozos inveterados, procedimento sem o qual nasceria o risco da fetichização do “popular” sob a chave do “autêntico” e da celebração da diferença em si mesma (pensemos em um filme como Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro).

Nos momentos em que esta agressividade vem à tona, é evidenciada a violência das marcas sociais que organizam o comportamento dos personagens. Seguindo ainda Rancière, “a experiência dos pobres não é apenas a das deslocações e das trocas, dos empréstimos, dos roubos e das restituições. É também a da fratura que interrompe a justiça das trocas e a circulação das experiências”. Assim vemos em Baronesa quando, para além da singularidade irredutível dos momentos em que os personagens inventam estratégias de prazer, devém esta agressividade exposta no “rosto de uma criança que pode mesmo estar apanhando da mãe por um ato de desobediência que não parece ser grave o suficiente para tamanha agressão”, como escreveu Laís Ferreira em crítica sobre o filme. Uma agressividade que é menos a expressão da excepcionalidade daquelas personagens do que a reprodução sistemática dos vícios da vida social integrados coercivamente ao próprio gestuário das pessoas.

O fato é que, desde o começo, ainda que esta situação não absorvesse o discurso e as centelhas de criatividade dos personagens, a configuração do próprio espaço e o modo de representá-lo já traçava significações gerais mediadas pelas normatividades intrínsecas aos processos de reprodução material da vida daquelas pessoas. Uma configuração que era dada sem retórica, sem que esta violência da vida social esquematizasse as condutas das personagens, somente pela evidência do que nos era dado a ver: a repetição dramatúrgica do espaço domiciliar para as mulheres; a quase ausência de personagens masculinos (segundo o diálogo das personagens, evidencia-se que o destino dos homens daquela comunidade é a prisão ou a morte prematura); a posição dos personagens contra a parede, anulando a profundidade de campo; a estreiteza da paleta de cores cuja cor predominante é o marrom; o Estado enquanto fantasmagoria (nem sequer falam sobre Bolsa Família).

Ainda que os impulsos libidinais de Andreia, Lidiane e Negão não estejam completamente subtraídos à paralisia, os poucos movimentos no interior do quadro e a quase completa ausência de arco dramático nas cenas, características que distanciam Baronesa de A Vizinhança do Tigre, fazem com que as energias voluptuosas dos personagens convivam nestas trincheiras em um misto de criatividade e perpétua imobilidade. O presente, enquanto tal, é tanto a temporalidade própria ao instante da performance,que reatualiza as formas de vida imediatas e as modalidades de resistências, quanto de um estado contínuo de imobilidade e precarização das expectativas. Embora contrárias entre si, estas dimensões do presente articulam-se em relação de profunda complementaridade, numa temporalidade em que “qualquer coisa pode acontecer, mas nada acontece; nada parece acontecer, mas muito acontece aos personagens” (André Brasil) – daí a dificuldade em definir com precisão o estatuto da existência daquelas personagens, clivadas entre as reinvenções que suas microvivências individuais efetuam e as determinidades prescritas pela vida coletiva.

A mise-en-scène de Baronesa assume uma postura diante da questão fundamental, posta pela articulação do estético com o político, enunciada pelo crítico francês Jean-Louis Comolli: “Como passar do indivíduo à massa? Questão política. Como passar da coletividade ao sujeito? Questão cinematográfica. Os dois movimentos – para o único, para o múltiplo – se cruzam e descruzam, oscilação sem fim.” Nesta tentativa de passar do indivíduo para o coletivo e do coletivo para o indivíduo, o processo de torção da forma do filme se dá na mesma medida em que uma teleologia narrativa vai se inserindo: o momento fundamental é o raccord que marca a passagem entre o plano da dança em que o braço de Andreia se conecta com aquele mesmo braço segurando uma arma enquanto treina com Negão.

Se, no primeiro momento, o movimento da mise-en-scène era para o único, onde acompanhávamos a reinvenção daquele cotidiano (feito de elementos da vida coletiva) pelas vivências individuais dos personagens, em seguida o movimento vai em direção ao múltiplo, explorando como a tragicidade da vida social interrompe as experiências dos indivíduos e outorga imperativos de ação. Tal como enunciado por Jean-Louis Comolli: a “questão política” envergando a “questão cinematográfica”, como se as condições críticas do presente exigissem que a narrativa assumisse esta disposição desigual das forças, não sem antes ter explorado as latências do singular que o gesto cinematográfico mobiliza, evitando um olhar condescendente e o consequente anestesiamento da política que marcou anteriormente um conjunto de filmes brasileiros realizados principalmente entre 2008 e 2013 e envolvidos nas circunstâncias do “cinema do afeto” (ver, por exemplo, o ensaio “Com Violência”, de Fábio Andrade, na Revista Cinética).

Em Baronesa, para exprimir esta sobreposição do coletivo sobre o indivíduo, o filme permite que procedimentos de uma mise-en-scène clássica – na qual a eficiência discursiva é obtida pela junção de unidades significantes, o que implica organizar a narrativa com base em exigências de ordem dramatúrgica – atuem sobre os procedimentos utilizados pelo filme até então (próprios de um cinema mais contemporâneo: rarefação narrativa, dramaturgia elíptica, tempos distentidos). Se, anteriormente, a duração dos planos eram “fatias de tempo” em seus vínculos precários com o passado e o futuro, inertes da pulsação dramatúrgica em vista de uma determinada finalidade, agora, no momento em que Negão se prepara para “ir à guerra”, um sentido narrativo vai se impregnando na imagem e operando a reinstauração da conexão trágica entre imagem e mundo. Uma narrativa exterior aos planos conduz os sentidos internos destes: as cenas cumprem o trajeto de apresentar Negão se preparando para a “guerra”, a sua ida e o luto que se instala após a sua morte, além da reincidência da lanterna, único objeto específico que retorna em dois momentos da narrativa para cumprir funções dramatúrgicas de tematização da presença de Negão (antes da sua morte) e da ausência (após a sua morte). Ao transformar os procedimentos da forma, as táticas de reinvenção do cotidiano pela via do prazer são substituídas pelas táticas de sobrevivência: posicionar o colete à prova de balas, testar a eficácia da espingarda e dos esconderijos da droga, narrar uma experiência do passado, cortar o cabelo, não para transformar a aparência, mas para vendê-lo e tirar o pai da cadeia.

O ponto de ruptura da forma é quando a violência extrapola os limites do extracampo e interrompe, em definitivo, o convívio de Andreia e Leidiane – e, com isso, o próprio registro do filme. Pela primeira vez, evidencia-se o processo do filme reflexivamente quando a invasão violenta derruba a câmera. Os barulhos de tiro, a câmera caindo e, junto a ela, toda uma estrutura de encenação cujas fraturas eram consumadas paulatinamente. No primeiro momento, algumas características gerais do quadro que encenavam normatividades sociais. No segundo, o fio narrativo costurado pelas exigências materiais que forçam a saída de Negão, seguida pela sua morte e o luto de Andreia e Leidiane. Por fim, a coercividade do mundo que interrompe abruptamente a coexistência de Andreia e Leidiane, exigindo que o modo de representação destas se altere profundamente nos momentos seguintes.

Em um dos raros movimentos laterais que a câmera realiza, abandonado seu ponto de vista hegemonicamente fixo, acompanhamos Andreia caminhando pela estrada e finalmente parando na beirada para observar, desta vez, Baronesa. Em outro movimento de câmera semelhante a este, assistimos Negão andando em Vila Mariquinha, parando e balançando um objeto pendurado numa porta. Se os movimentos repetitivos daquele objeto traduziam ludicamente o misto de atividade e imobilismo daquele momento da narrativa, agora, ao mover-se para acompanhar Andreia, a câmera segue o seu o olhar: a direção assume, pela primeira vez, a câmera subjetiva e alcança tanto o bairro (supostamente Baronesa) quanto o horizonte sistematicamente excluído do restante da narrativa, e manifesta um novo processo de organização e construção do ponto de vista – a profundidade de campo, os movimentos de câmera e dos personagens, a decupagem interna aos planos e uma ausência de ruídos que produzem um olhar mais completivo, permitindo que os personagens existam em suas respectivas quietudes e instaurando um momento de indefinição – uma vez que estivemos apartados deste modo de representação durante toda a narrativa, não sabemos bem o que sentir, para onde olhar, assim como Andreia e Leidiane, que estão separadas pela primeira vez.

Agora, a reinvenção, mais do que lúdica ou em função do prazer, é material: reconstrói-se a casa, tijolo por tijolo, sob o silêncio necessário para a reconstituição do grito – a música interrompida no momento dos tiros. Numa espécie de plano e contraplano entre Andreia e Leidiane, ambas sentadas na parte superior da casa das suas moradas, esta duplicidade da sequência final explicita a envergadura do processo: embora exista uma latência de força naquelas personagens, de onde Andreia retira a energia com que constrói sozinha sua nova casa, ainda existe também a contra-parte dialética reposta pela violência da vida social que não foi abafada, representada pelos ruídos que invadem o plano de Leidiane como o faiscar de um perigo prestes a novamente romper as barreiras do extracampo. Uma vez rompida a forma do filme, não há sutura possível – não há possibilidade de redenção ou satisfação do espírito com um final reconciliatório cujo saldo final seria somente a preparação da sensibilidade do espectador para as brutalidades das experiências. Contra isso, o crítico Victor Guimarães escreveu que talvez o gesto mais urgente de uma dramaturgia política hoje consista em neutralizar radicalmente qualquer forma de catarse”.

Por suposto, Baronesa é um destes filmes que não apelam para a catarse. Ou melhor, Baronesa é um destes filmes que não terminam, mas que, como o crítico francês André Bazin dizia, “retornam ao tempo como os rios retornam ao mar”. Somente assim é possível descrever como somos incumbidos a sentir o peso daquele plano final – o mistério, o som abafado, o futuro velado, a criança sozinha, podendo cair da cama a qualquer momento, mas também de olhos fechados, porque é assim que também se sonha.

 

*Filme visto na 20ª Mostra de Tiradentes

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