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Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho

29/10/13 às 23:42 Atualizado em 17/10/19 as 19:10
Um Dia na Vida, de Eduardo Coutinho

Concluído em 2010, esse longa-metragem de Eduardo Coutinho não pode ser exibido em circuito comercial por problemas de direitos autorais. O renomado documentarista gravou 19 horas de programas e comerciais de canais abertos e editou o material, gerando pouco mais de uma hora e meia de filme. Nas mãos erradas, essa ideia corria risco de ser apenas um truque pretensioso e sem valor, mas nas de Coutinho, virou uma narrativa reveladora e impactante sobre a televisão brasileira.

Sob certo aspecto, Um Dia na Vida pode ser considerado um filme de horror. O longa é a prova mais enfática do potencial de nossa televisão para materializar uma distopia completa, um futuro pós-apocalíptico que rivaliza com clássicos sci-fi. Ficam evidentes os excessos na exploração ambígua da violência e demais assuntos frívolos ou ultrajantes, quase sempre trazidos ao público por figuras grotescas (e paradoxalmente carismáticas).

O panorama escolhido por Coutinho expõe uma catástrofe em diversos aspectos: as pautas são imbecis, os apresentadores são canalhas, a edição é leviana… praticamente tudo é motivo de vergonha para quem assistir com senso crítico a esses conteúdos. A ferida fica tão aberta que qualquer profissional atuante na área questionará, em algum nível, se resta qualquer nobreza no contexto em que está inserido.

Reservo apenas uma defesa de conteúdo para a breve aparição de um programa da MTV na porção final do filme. O trecho, que oferece Marcelo Adnet, Falcão e Massacration, é o único em que a televisão satiriza a si mesma, demonstrando sobriedade e sinceridade muito rarefeitas nesse meio. É lamentável que esse único respiro de consciência venha de uma emissora que deu suspiro derradeiro enquanto canal aberto há algumas semanas.

O problema fora da tela

A sucessão de imagens arranjada por Coutinho pode fazer o espectador se sentir um pouco como o personagem Alex diante dos experimentos audiovisuais de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick. A propósito, a reação do público, ao menos na sessão da última sexta-feira (25), provou ser um dos pontos altos nesta empreitada original e arriscada do diretor. Repulsa, estupefação, euforia – quase nada aparecia na tela sem mexer bastante com a plateia.

Apesar de Coutinho ter dito, antes do início da projeção, que se interessava menos em colher a opinião dos presentes que a de quem realmente assistia àqueles conteúdos diariamente, duvido que ele possa negar o quanto essa sessão, ocupada pela elite, foi uma experiência sociologicamente elucidativa.

Dependendo de como determinado setor da sala se manifestava, era possível fazer deduções de personalidade mais facilmente que em outros filmes – quem segura a gargalhada em Chaves, quem ri mais rápido (e por qual razão) com os despautérios do Wagner Montes, quem força a risada diante de falas previsíveis do Datena. É bem fácil rir dessa televisão débil. A tarefa árdua é não cair numa certa dança de hipocrisias e contradições a que o filme convida discretamente e na qual o espectador incauto se insere sem perceber. Vendo por esse prisma, Um Dia na Vida transfere a maior parte de sua beleza e de seu significado para as reações vistas na sala.

Mas Coutinho não sai ileso desse experimento. Aliás, para quem se aventurar a negar a força de Um Dia na Vida, haverá o argumento breve de que o filme é apenas um exercício tendencioso de escolha de conteúdo e edição. É possível, por exemplo, destacar a preferência exacerbada do diretor por propagandas políticas esquerdistas e conteúdos sensacionalistas, em desequilíbrio que compromete uma imparcialidade que (nunca existe, mas) pode ser defendida.

Disfunção narcotizante?

Um dos maiores méritos de Coutinho com Um Dia na Vida é conseguir tecer uma história por meio da programação diária da televisão brasileira. O dia começa ameno e então alterna momentos de fofocas, vendas e pautas leves com outros mais densos de violência, religião e dramaturgia kitsch – não dispensando um ápice e até um epílogo, que ficam subentendidos.

No entanto, a transição entre momentos antagônicos nessa história muitas vezes se dá de forma brusca e vexatória, sobretudo nos telejornais (como quando uma âncora vai da matéria policial para a de moda dizendo: “agora vamos relaxar um pouquinho”). A forma confusa como os programas agregam informações, a falta de profundidade das matérias e a consequente atenuação do senso crítico diante dessa distorção parecem endossar plenamente o caráter da televisão enquanto geradora de uma “disfunção narcotizante” – como defenderam os teóricos funcionalistas Paul Lazarsfeld e Robert Merton em artigo de 1948.

Sem querer querendo, Coutinho (fã assumido do seriado Chaves) dá uma aula impecável de teoria da comunicação sem jamais explicitar essa intenção, interferindo incisivamente no conteúdo apenas por breves menções ao horário em que cada conteúdo foi gravado.

É tentador imaginar como isso será visto por brasileiros daqui a alguns anos (a TV permanecerá assim?) ou mesmo por estrangeiros hoje em dia (a TV deles é assim também?). Parece brincadeira, mas Um Dia na Vida é um documento revolucionário e bem valioso, em boa parte graças à sua montagem. É incrível como mudar o contexto de uma exibição, alterando tamanho da tela, organização do público e local de projeção podem mudar nossa percepção sobre um produto audiovisual.

*Filme visto na 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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