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Cristina Amaral defende responsabilidade do olhar: “não se faz nada com plebiscito”

28/06/17 às 20:02 Atualizado em 10/10/19 as 00:28
Cristina Amaral defende responsabilidade do olhar: “não se faz nada com plebiscito”

A baixa estatura, a fala mansa, a preferência pela discrição e até mesmo a função que escolheu para trilhar a sua carreira no cinema contribuíram para deixar a montadora Cristina Amaral longe do perfil costumeiramente explorado pelos holofotes midiáticos. A exceção aconteceu durante a 12ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, na qual foi a homenageada na temática Histórica. Mesmo nesse momento de celebração individual, ela fez questão de dividir os méritos pelo Troféu Vila Rica.

“Eu entendi o convite como uma homenagem a um tipo de cinema e a uma postura em relação ao cinema. Estou encarando mais assim do que como uma homenagem a mim. Até porque eu falo que não faço mais do que minha obrigação. Acho que é obrigação de todo mundo tentar fazer o seu trabalho o melhor que puder, com o máximo de seriedade”, comenta Cristina.

No currículo como montadora ela tem alguns dos filmes mais importantes do cinema brasileiro nas últimas décadas, como Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, O Homem que Não Dormia, de Edgard Navarro, e Serras da Desordem, trabalho realizado por Andrea Tonacci, companheiro de vida de Cristina que faleceu no último mês de dezembro.

Em uma longa conversa com o Cine Festivais durante a 12ª CineOP, Cristina Amaral falou sobre a sua trajetória e colocou seus pontos de vista a respeito do mundo e do cinema. Ela ainda comentou sobre o seu projeto prioritário para os próximos anos: montar filmes com registros deixados por Tonacci.

 

Cine Festivais: Queria que você começasse contando como foi a escolha da sua função no cinema. Vi que seu interesse inicial era pela direção de fotografia, e já ouvi alguns casos de mulheres, daquela época ou não, que desistiram da área por causa da exigência física. Como você lidava com isso?

Cristina Amaral: Antes de entrar na faculdade eu fazia fotografia estática. Foi a primeira coisa que me ligou (ao cinema). Num primeiro momento na USP eu fui para essa área e fiz assistência de câmera. A gente na escola era eletricista, era tudo dentro do set. Tinha uma equipe que instalava a caixa de luz e essas coisas, mas quem ligava e desligava todo dia, mexia nos refletores e posicionava os equipamentos era a gente. Para mim era uma coisa de dividir o peso. Eu não conseguiria carregar nunca uma câmera 35mm junto com o zoom e o tripé. Eu separava e carregava por blocos. Com a prática você aprende a equilibrar a coisa da força e a dividir o peso.

Fiz alguns trabalhos com fotografia, mas não foi por essa questão física que mudei de área. Foi porque entendi que a montagem era uma coisa que eu ia gostar mais de fazer, que tinha mais a ver comigo do que a fotografia. Durante um tempo eu até me dividi entre os dois, mas para você fazer direito tem que ter dedicação, tem que estudar, então eu acabei optando mesmo pela montagem.

Quando fiz o curso de Cinema eu achava que teria que fazer outra faculdade para trabalhar e sobreviver. Pensava que de cinema não ia dar. Tinha uma produção grande na Boca (do Lixo, em São Paulo), mas eu não queria fazer aqueles filmes lá. Tinha um amigo que brincava: “é só você tirar os véus de início e de fim de plano e pronto.” Eu falei que não era o que eu queria, que não tinha esse interesse. Hoje eu vejo que foi uma bobagem, né, porque o Carlão Reichenbach estava filmando lá e eu poderia ter conhecido ele antes. Mas eu não tinha muito essa informação, esse conhecimento.

 

Você pensava em outra profissão?

Não, teria que pensar. Seria uma coisa financeira mesmo. Eu falei: “bom, vou fazer o curso e depois vejo como resolvo isso.” Mas não sei que outra profissão eu poderia ter.

 

Você falou que não teve o desejo de trabalhar nos filmes da Boca do Lixo, mas acabou indo trabalhar em publicidade…

Não, não trabalhei em publicidade. Eu preciso corrigir essas informações que estão no Wikipedia e tal, porque tem um monte de coisa errada.

Quando saí da escola eu percebi que precisava aprender um pouquinho essa parte de planejamento de efeitos, de finalização dos filmes. Na escola a coisa era precária, a gente fazia cartela, punha a câmera e filmava letreiros na parede da sala (risos). Quem tinha esse conhecimento na época era a área de publicidade, então eu decidi fazer estágio em uma produtora de publicidade exatamente nessa área de finalização, para entender como funciona esse processo.

Bati na porta de um monte de gente, mandei cópia do currículo… Teve lugar que me deu resposta negativa porque eu já tinha feito muita coisa, considerando os filmes que fiz na escola. Na ECA tinha uma coisa bacana nessa época, que era a gente transitar por todos os semestres. Então eu fiz filmes com turmas mais novas e mais velhas que as minhas. Aí teve uma produtora em que o finalizador topou que eu fizesse estágio com ele. Era uma empresa grande, que fazia filmes com bons orçamentos, mas em pouca quantidade. Eles faziam um filme por mês, algo do tipo, e eu cheguei lá e nada acontecia. Eu levava um livro e ficava lá na sala de finalização sentada, lendo, sem ter nada a ver com aquele universo.

Aí um dia chegou o material das filmagens e o montador chamou todo mundo para ir para a moviola ver o material bruto. Ele me viu quieta no canto e também me chamou. Passados vinte minutos, eu fui a única pessoa que continuou com ele na moviola, porque ninguém tinha paciência para assistir aquilo ali. A gente ficou conversando e acabou que nos outros dias eu não voltei mais para a finalização. Fiquei lá na moviola acompanhando os trabalhos dele.

Para mim foi uma sorte porque esse cara é um super montador, com uma formação de cinema no MAM-RJ, mas que por circunstâncias acabou indo parar na publicidade. Ele chama Humberto Martins. Eu falo que eu sou montadora, mas ele é um gênio. Aí teve uma hora que ele brigou com a produtora, saiu e começou a trabalhar como freelancer. Então o Humberto me chamou para fazer assistência para ele nesses frilas. Eu aceitei porque era demais ver ele trabalhar. Não por causa do material, que era um horror.

 

Eram filmes publicitários?

Isso. Era um horror. Eu sincronizava aquilo e falava: “não vai sair filme daqui nem tossindo.” Só que ele sempre inventava alguma coisa, e era lindo ver esse processo. O Humberto era muito respeitado e conceituado por isso. Tinha material que as produtoras seguravam e falavam “isso aqui só o Humberto monta”, porque sabiam que ele ia trazer essa qualidade. Então eu fiquei durante quase um ano fazendo assistência para ele, mas porque era para ele.

Eu não tinha nada a ver com esse universo de publicidade. Tanto é que chegou uma época em que ele ia ser contratado por uma produtora e fez a cabeça do dono para me contratar. Eu sempre falo que tenho muita sorte, e não é sem razão: nesse exato momento me pintou um convite para fazer assistência de montagem em um documentário de longa-metragem (Ôrí, dirigido por Raquel Gerber), e aí falei pra ele: “desculpa, eu sei que você fez a maior batalha para eu ser contratada, mas você sabe que eu não tenho nada a ver com publicidade.” E então saí da publicidade na hora certa. Porque se não você começa a criar um outro padrão de vida, tem que comprar um sítio, tem que passar o réveillon em Trancoso, tem que comer em tais restaurantes, passa a ser uma coisa que te desvia. Então na verdade eu não considero que trabalhei em publicidade. Eu fiz assistência porque era para o Humberto, se não fosse assim eu não teria ficado tanto tempo.

 

O Andrea Tonacci falava que não se via como um cineasta de carreira, justamente por essa questão de manter uma integridade nas escolhas que ele fazia. No seu caso há uma trajetória que inclui um número bem maior de filmes, mas você sente que essa necessidade de escolher bem os projetos esteve ao longo de toda a sua carreira?

Acho que isso foi afunilando. Teve um primeiro momento em que eu trabalhei praticamente com todos os diretores em São Paulo. Na montagem, como você passa um período grande com o diretor e não tem uma equipe inteira por perto, acaba entendendo melhor a visão de mundo da pessoa e o quanto você se dá bem ou não com ela. É uma coisa de proximidade pessoal. Você já entende num filme se deu certo ou não. Tem vezes em que você faz o melhor possível até o final e pronto, nunca mais. Nem a pessoa te chama e nem você quer (que ela te chame).

Desde a faculdade eu já tinha entendido o tipo de cinema com o qual queria me aproximar. E uma coisa engraçada é que você vai criando o mesmo campo de atração. Eu fui me aproximando desses realizadores que eram os caras que eu tinha visto os filmes na escola e que me fizeram pensar: “nossa, cinema é isso pra mim. Não é contar história.”

Primeiro foi o Carlão Reichenbach, que acho que foi meu presente profissional. Ele me colocou em outro patamar, alterou tudo. E o Carlão também tinha essa postura de integridade com relação às escolhas que ele fazia. Para mim eles (Carlão e Tonacci) foram exemplares nesse sentido.

Aí fui começando a afunilar o tipo de trabalho e o tipo de pessoas com quem eu trabalhava. Hoje eu não me considero uma montadora no mercado, mas tenho trabalho o tempo inteiro, e são trabalhos que eu tenho o maior prazer e orgulho de fazer porque são projetos muito bacanas, de pessoas muito legais. Eu falo que se eu tivesse que dar um conselho para alguém, seria: “olha, meu, presta atenção no que é que você vai fazer, com quem você quer fazer, e vai adiante.” Fica tudo melhor, mais prazeroso, e o resultado do seu trabalho é melhor por você acreditar no que está fazendo. E dá certo. Eu sou a prova que dá certo, né?

 

A montadora Cristina Amaral (Foto: Laura Del Rey)

 

Uma coisa que você disse no debate aqui na CineOP é que não se oferece para montar filme de ninguém. Isso é um exemplo da sua relação com o cinema…

Acho que é uma coisa muito delicada. Tem que vir esse convite, tem que ter esse entendimento. A montagem é um trabalho de cumplicidade. E essa cumplicidade implica nessa sinceridade de você poder dizer, com a maior delicadeza, com o maior cuidado, que às vezes uma coisa não está boa para o filme. O importante é a gente conseguir o melhor do filme, então faz parte do trabalho de montagem você ter essa postura também.

 

No catálogo há um texto do Thiago B. Mendonça exaltando o seu trabalho. Diretores como o Adirley Queirós idolatravam o Andrea Tonacci e também te tem como exemplo. Como você sente isso?

Eu não me sinto exemplo para ninguém. Cada um tem que entender o seu caminho e fazer. Agora, com esses meninos eu tenho uma comunhão muito grande. Foi um afago no coração de repente descobrir que tem uma geração vindo fazer cinema de uma outra forma. Entendendo que o cinema não é um cartão de visitas que eu vou apresentar para conseguir uma outra coisa. Que tem a ver com o viver, com a vida, com a postura no mundo, e isso o Adirley (Queirós) tem, o Thiago (B. Mendonça) tem, o André Novais tem. E são filmes incríveis exatamente por isso. Não é só conversa, o cinema que eles professam tem a ver com isso. Para mim foi um conforto ver surgir essa geração. Claro que tem outros nomes que surgiram antes, como o Carlos Adriano, que é uma pessoa que eu olho e é lindo de ver a integridade com que ele professa o cinema. Ele não abre mão do seu princípio de fazer.

 

Do Carlos Adriano houve a exibição aqui na CineOP do ótimo curta A Voz e o Vazio – A Vez do Vassourinha, que é um trabalho em que a textura da imagem é um dos focos de reflexão, e por isso mesmo faz bastante diferença ele ser exibido em 35mm. Como você encarou essa mudança do analógico para o digital na sua função?

Acho que na parte de som foi um ganho muito grande com o digital, com certeza, até por conta das limitações que a gente tinha de laboratório. Com a película a gente via o filme, mixava, ouvia uma coisa no estúdio, e nunca mais. Eu lembro que conversava muito com o José Luiz Sasso (editor e técnico de som) e falava: “Zé, tem alguma coisa no processamento químico do negativo de som que já destrói uma coisa que a gente ouviu no estúdio.” E aí o filme ia para o processamento de cópia, depois caía nas projeções, e era duro de ver. Acho que o digital trouxe a possibilidade de melhorar esse aspecto.

Ao mesmo tempo, a base do digital é a nitidez do foco, tanto na imagem quanto no som. Se você quer trabalhar nuances, é muito complicado; você tem que trabalhar muito, botar muitas camadas para tirar essa dureza do som e da imagem digital. O Zé fala muito que o som digital é um som sem alma, porque ele não tem todas as outras ressonâncias que o som te permite. Ele é aquela coisa precisa, dura, com foco. Na imagem é a mesma coisa, você sempre tem que ficar trabalhando camadas.

Eu lembro de uma coisa que o Carlão falava: “a grande fotografia aspira a pintura.” Se você olhar a história das Artes Plásticas é meio impressionante, já estava tudo lá, a cor, as fontes de luz, e a fotografia correu o tempo inteiro atrás disso. O digital não te permite isso. Acho que tem um filme que chegou perto disso, que é o Fausto do Aleksandr Sokurov, mas custou uma fortuna. A gente não tem noção do tanto de processamento que tem ali para chegar naquela imagem.

Por outro lado, o digital pode simplificar se você quiser. Porque é aquilo, os melhores diretores brasileiros são os que menos têm recursos para trabalhar. Então facilita. Com R$ 15 mil você compra uma câmera de 4K, por exemplo. Simplifica na medida em que o cara não precisa ter um exército no set de filmagem, que é outra coisa que atrapalha, dispersa. Então facilitou pra esses diretores filmarem mais e baratearem seus processos de trabalho.

No meu caso, eu mantenho viva dentro de mim a experiência da montagem na moviola, que é uma coisa mais íntima, mais confortável. Com ela você não tinha essa emissão da imagem direto no seu olho, que é uma coisa que faz muito mal para a vista. Tem gente que comete um crime maior que é ficar trabalhando com luz apagada; isso acaba com a vista. Eu não uso óculos, mas tenho vista cansada, e isso eu não tinha na moviola, porque todo mecanismo era diferente. A coisa da movimentação também te ajudava fisicamente no processo analógico. Hoje em dia se você não fizer alongamento, exercício físico e exercício para os olhos, em dez anos você está incapacitado de continuar trabalhando.

Demora um pouco mais, mas eu sempre vou buscar um modo de me concentrar na imagem, mais do que nas operações todas do processo digital, que envolve mouse, teclado, mesa de som, três monitores… É uma coisa dispersiva. Eu tento recuperar essa experiência que tenho da moviola.

Antigamente eu dava treinamento pra estagiários, e os levava para uma sala na minha casa em que eles podiam ter a experiência da montagem antiga, com moviola, enroladeira, sincronizador, etc. Eles passavam por lá e só depois subiam pro andar de cima, na ilha de edição. Eles chegavam diferentes lá, não iam brincar de video game. Eu acho um crime as escolas de cinema estarem se desfazendo das moviolas. Tem que ter, para aprender o que é um fotograma, o que é aquela imagem que ele está mexendo, se não você está vendo uma miragem; você aperta um botão e faz qualquer coisa com ela ali.

É claro que a tecnologia facilita muita coisa. Hoje eu posso colocar um longa-metragem inteiro na timeline e assistir, o que na moviola não conseguia, porque era separado por rolo. Até hoje eu abro um projeto para cada rolo do filme e depois abro um projeto só para assistir ao filme inteiro. Isso é algo que não tinha com a moviola, mas ao mesmo tempo a gente exercitava a imaginação de fazer a ligação entre um rolo e outro.

A gente sempre tem que ter uma certa resistência, e não ficar essa coisa embevecida com relação à tecnologia e achar que tudo se resolve ali. Porque na verdade a tecnologia está sendo desenvolvida para desconsiderar o ser humano. O projeto é fazer tudo sem o homem. Não sei o que vão fazer com essa humanidade, talvez jogar fora e ficar só robô. Isso está criando um nó na cabeça das pessoas, porque tem gente que está vendo a sua profissão virar fumaça da noite para o dia, e ela não foi preparada para isso.

Nos laboratórios isso já aconteceu. Outra área em que já aconteceu em parte é a área de projeção do cinema, com um cara controlando a projeção de nove salas. E a gente tem que reagir nesse sentido: tudo bem, vou usar, tem coisa que é bacana, é bom ver e-mail no celular, mas não vou ficar dependente disso, não posso ficar. Não posso deixar de conversar com as pessoas porque tenho celular. Você pega metrô e de dez pessoas nove estão com a cara no celular. A gente está criando um problema sério daqui pra frente se não se reposicionar com relação a tudo isso.

 

E como é a sua relação com a tecnologia?

Eu uso, fotografo as coisas, mas acho que a gente tem… Por exemplo, vou começar a colocar as minhas fotos no papel, pelo mesmo processo que a gente fazia com a máquina fotográfica. Tentar uma coisa mais criteriosa. Hoje as pessoas fotografam demais, e não olham. Eu estava dois meses atrás no Louvre e tinha gente se fotografando diante dos quadros. Eu falei: “pronto, acabou.” A pessoa tem a chance de estar lá para ver aquelas obras e não as vê mais.

Isso é uma coisa que eu achava essencial de ter. Chamo de educação dos sentidos. Apresentar para a criança desde pequena as coisas belas e boas que existem feitas. Sempre menciono como exemplo o Paulinho da viola. Eu li uma entrevista dele em que falou que o pai não o deixava ouvir música ruim, e se você for ouvir a obra inteira do Paulinho você não vai ouvir uma música ruim. Ele vem com uma qualidade constante, é um negócio impressionante.

Isso é educação dos sentidos. Para mim hoje em dia é insuportável ouvir rádio. Eu cresci vendo na televisão e ouvindo no rádio o que a gente tinha de melhor na música brasileira. Cartola, Elizeth Cardoso, Vinicius de Moraes, Baden Powell, João Gilberto… Eu não consigo ouvir essas coisas de agora. Eu vejo minhas sobrinhas ouvindo cada coisa. Então, se você fica ouvindo desde pequeninho coisa ruim, você vai achar que aquilo é bom. O jeito que você educa seu filho vai determinar como serão os adultos que cuidarão do mundo daqui a 20, 30 anos. As pessoas chegam e falam que temos que lutar contra o machismo. Ótimo. Mas como é que você educa seu filho? Você cria um playbozinho dentro de casa, cria um tiranozinho dentro de casa? Como é que você vai querer que ele seja um adulto bacana, que trate bem as mulheres, que seja justo com o mundo, que seja generoso? Então, se a gente não oferecer um conhecimento melhor para as crianças, não vai adiantar nada, vira discurso vazio, vira chororô depois.

 

Falando sobre o olhar, como você lida com essa ideia de que há momentos em que é preciso dar uma pausa durante o processo de montagem para poder enxergar novas nuances no material?

Eu recebo sempre muito material. Para um longa de ficção, são geralmente umas 30 horas para um filme que no final vai ter de uma hora e meia a duas horas. Para documentários esse número vai para 100, 130, 140 horas. E a gente não pode ter preguiça. Às vezes as pessoas falam “eu posso te mandar uma coisa meio pré-selecionada”, e eu digo que não, que quero assistir tudo. E não vejo uma vez só, tenho que ver várias vezes até entender, ver detalhes dessa imagem.

Evidentemente, tem um momento – mas aí é mais para frente, quando está perto de terminar – em que é bom você dar um respiro e ficar um tempo sem ver, para quando voltar você enxergar coisas que não viu durante todo aquele processo anterior. O resto é mergulho e não ter preguiça de nadar.

 

Além do diretor, tem outras pessoas para quem você gosta de mostrar o material, pedir conselhos…

Acho que a gente tem que ter a coragem de correr o risco. Para mostrar, tem que ser para pessoas muito confiáveis. (É preciso) Que você confie no olhar dela e que você confie que é uma pessoa que vai olhar querendo o melhor do projeto. Às vezes tem ‘nego’ que vem e fica dando pitaco à toa. Isso não precisa, até atrapalha. Já aconteceu de eu pegar filme com diretor inseguro, que fica trazendo toda hora gente para assistir.

Eu criei até mecanismo de defesa, porque a gente sabe quando está bom e quando não está; a gente é o melhor e o pior juiz da gente. Às vezes escutava elogios que entravam por um ouvido e saiam pelo outro, porque eu sabia que não era aquilo. Se a pessoa fica se pautando muito por isso, ela perde o rumo do filme que vai fazer. E eu acho que em cinema, arte em geral, se você não correr o risco, não vale. Querer ir na fórmula que já deu certo não vale. É um processo de vida, você tem que estar ali até aquilo chegar para você e te dizer: “oh, agora tá legal.” Tem essa coisa da sua relação com o material. É você, o diretor e uma ou outra pessoa, mas tem que ser uma escolha de pente fino mesmo. Não pode virar plebiscito, não se faz nada com plebiscito.

 

Você acha que o advento do digital criou no cinema uma geração mais insegura, que corre menos riscos?

As pessoas estão indo pela facilidade de fazer. Tem gente fazendo cinema e que não conhece filmes da história do cinema brasileiro ou filmes importantes da história do cinema mundial. Tem que ver. O Ugo Giorgetti tem uma frase que eu acho maravilhosa: “sempre que acordo me achando, pego um puta filme pra assistir e me ponho do meu tamanho.” O aprendizado assistindo coisas e estudando, lendo, tem que ser pra sempre.

Acho que as pessoas estão indo fazer cinema de uma forma despreparada. Assim, insegurança, frio na espinha, a gente tem sempre. Todo filme que eu começo a montar eu não tenho certeza nenhuma se vou conseguir terminar bem. Na verdade é esse frio na espinha que me move, eu espero por ele até, porque no dia em que não tiver mais isso, acho que está na hora de parar. Mas segurança não existe. Não adianta falar: “eu já montei não sei quantos filmes.” Esse filme que vem é novo, eu não conheço, eu não sei. Esse processo de busca, de aprendizado que a gente vai ter sempre em cada trabalho, é o melhor da história. O resto, todo o show biz, é a pior parte da história, é o que mais faz mal pra gente. Tem que focar no processo do fazer; é esse o grande prazer, a riqueza que a gente recebe no processo de fazer o filme.

Uma coisa que eu comecei a brecar são aqueles pedidos de gente que eu nem conheço e chegam falando: “eu estou terminando de montar meu filme e gostaria que você visse e desse uma opinião.” Como é que eu vou fazer isso? É um constrangimento. Eu não gostaria que alguém que eu não sei quem é viesse ver o filme que eu estou montando para falar alguma coisa sobre isso. Não faz sentido. E aí com que cara vai ficar esse filme? Vai virar um Frankenstein? Você tem que ter essa integridade de relação entre a direção, a montagem e o filme que resulta. Então é o seguinte: está com medo? Que bom! (risos) Continua firme.

 

Com relação a essa questão da validação, se a gente for pegar o cinema comercial a validação é feita pelo dinheiro. Já nesse universo de cinema mais autoral a validação é feita principalmente pelo universo dos festivais. Muitas vezes acaba-se criando um cinema autoral mais vendável, mais comercial…

Isso é outro embuste, na verdade. (O objetivo) Não tem que ser nem pra festival, tem que ser para ficar na História. Para que daqui a 100 anos o filme diga alguma coisa para a pessoa que o assistir. Às vezes as pessoas querem correr para finalizar o filme para mandar para festival. Eu falo: “para, festival tem todo ano. Termina o filme com integridade e deixa ver o que vai acontecer.”

O Andrea falava depois que finalizava os filmes: “agora já não é mais comigo.” Deixa o filme andar. Não é isso que vai delimitar o sucesso. Se a gente for olhar, as nossas maiores bilheterias são os nossos piores filmes.

No todo, fazer filme para bilheteria é até uma necessidade porque o cinema é uma atividade cara, então tem que ter filmes que fazem o giro do dinheiro, mas não precisam ser emburrecedores e não podem ser desrespeitosos com o espectador do jeito que é aqui.

Eu dou como exemplo positivo o Quanto Mais Quente Melhor, filme em que você ri de cabo a rabo, mas que traz um monte de reflexões, cutuca uma série de coisas da sociedade americana com inteligência, e é uma comédia. Tem que fazer comédia também, é bom, eu gosto de rir. Agora, não pode ser essa coisa constrangedora, porque nem engraçado é. Um dia eu vi uma dessas comédias nacionais recentes na TV e, gente, é impressionante como o Brasil conseguiu chegar ao cinema de baixo calão. É pior que aquelas pornochanchadas, porque as pornochanchadas eu assisti todas. É muito pior. Chegou num ponto inaceitável.

 

Ao longo da sua trajetória, como foi a sua relação com os festivais de cinema?

Eu vou aos festivais quando tem filme em que trabalhei, e acho super importante os realizadores irem, até para entenderem em que festivais vão inscrever seus filmes. Alguns festivais são um circo, realmente não valem a pena. Você quer ir lá? Pra quê? Assim como foi um processo trabalhar com vários diretores e entender que proposta de cinema cada um tinha, com os festivais é a mesma coisa; você vai conhecendo o perfil de cada um. Mas é um exagero (o número de festivais). Se você for a todos eles, vai chegar uma hora em que não vai ver filme nenhum, porque já viu todos.

 

Falando mais especificamente da CineOP, você citou a sobriedade do festival como um dos motivos para aceitar a homenagem. Ao mesmo tempo, é bem raro que um profissional de uma função que não seja a direção ou a atuação seja homenageado nesse tipo de evento, muito por conta da noção de autoralidade predominante. Como você encara essas duas questões?

Eu entendi o convite como uma homenagem a um tipo de cinema e a uma postura em relação ao cinema. Estou encarando mais assim do que como uma homenagem a mim. Até porque eu falo que não faço mais do que minha obrigação. Acho que é obrigação de todo mundo tentar fazer o seu trabalho o melhor que puder, com o máximo de seriedade.

Na CineOP pesou essa coisa da sobriedade, da seriedade, de todo entorno de debates que ela apresenta. Acho que essa edição especialmente adquiriu uma seriedade e um peso político muito grande. Eu fiquei arrepiada com aquela abertura; trataram de coisas sérias de uma forma muito séria ali. Para mim é sempre um aprendizado estar aqui no festival por causa das discussões e dos filmes.

Com relação à coisa da autoralidade, acho assim: eu não hierarquizo as funções do cinema e me coloco sempre com muita responsabilidade no meu trabalho dentro de um filme. Uma vez o Manoel de Oliveira me falou uma coisa muito linda com relação à montagem durante um encontro que tivemos na Mostra de São Paulo: “olha, a montagem é a terceira direção do filme.” Direção enquanto rumo, enquanto sentido, enquanto responsabilidade, e não como ego. E eu entendo isso mesmo, tem essa responsabilidade.

Mas assim, acho que o filme é do diretor. Ele é o fio que vai ligar tudo isso, que vai trazer desde o princípio e que vai continuar depois falando sobre o filme. Eu não vejo nenhum problema que sejam os diretores que sejam convidados pelos festivais, porque alguém tem que ir lá e falar com propriedade sobre o filme, e esse alguém é ele, mais do que eu, mais do que o diretor de fotografia. Para mim isso sempre foi muito tranquilo. Sempre estive junta dos diretores e sempre achei que o espaço para falar naquela hora (de apresentação e debate dos filmes) era deles.

Por exemplo, o Andrea era super avesso a falar. As pessoas chamavam para debates, e ele resistia. Depois que aceitava, na hora de sair de casa ele reclamava: “por que que eu tinha que aceitar? Eu não tenho o que falar!” (risos) E quando chegava ele dizia coisas lindas, eu gravei muitas dessas conversas. E mesmo diretores com essa consistência sempre têm muito mais num filme do que aparentemente a gente vê. Mesmo para mim, que fico trabalhando meses, às vezes anos em um filme, sempre tem alguma coisa que quando vou rever falo “nossa!”, que é algo que me espanta.

Os diretores vêm com uma bagagem de vida e cultural que eu não dou conta. É muita coisa. Na minha casa tinha pilhas de livros espalhadas pela casa inteira. Teve um dia em que ele (Andrea Tonacci) brincou: “você tem que entender que eu sou isolado.” Aí eu falei: “você é o isolado mais esparramado do planeta!” Porque em casa em todo canto tinha uma mesa com livros empilhados. Na casa do Carlão era a mesma coisa. Na casa do Rô (Luiz Rosemberg Filho) o apartamento tem livro em tudo quanto é canto, até para tomar café da manhã você tem que empurrar os livros e achar um canto para colocar a toalha.

Isso é lindo neles. Trazem tudo isso a cada filme. Eu não dou conta. É lindo porque eu posso ficar revendo esses filmes para o resto da vida e estarei descobrindo coisas, aprendendo mais alguma coisa. Acho mais que lícito (o fato de os diretores serem sempre homenageados), acho que é isso mesmo. E a direção não é por ego, é por responsabilidade. A responsabilidade maior dentro de um filme é do diretor, e é ele que tem que ir lá e responder mesmo.

 

Com certeza já te perguntaram se você já pensou em ser diretora. Acha que a pergunta faz sentido? O que você costuma responder a esse respeito?

Não sei. Eu sempre falo que a gente iria fazer o Brasil perder uma montadora razoável e ganhar uma diretora medíocre. Primeiro porque direção é um jeito de estar no mundo, é diferente. Ontem eu estava numa discussão com o Carlos Adriano e o Joel Yamaji, com eles falando que achavam que meu discurso tinha essa coisa da direção, e eu refutando. Essa angústia interna que eles têm em relação ao mundo, no nível que eles têm, eu não tenho. É uma coisa que vai explodir. O diretor, quando é de verdade, funciona quase como um para-raios. É uma antena que fica captando tudo do mundo, os problemas, as reflexões, as dores, as angústias, os desejos, as paixões, eles ficam captando tudo. Ninguém aguenta carregar isso. O cara tem que botar pra fora, reelaborar, e, no caso do cinema, transformar num filme. Em outras artes, pode ser num livro, num quadro…

O Iberê Camargo, pintor, passou por uma situação em que matou uma pessoa e depois foi absolvido por legítima defesa. A partir dali, a obra dele mudou, era difícil você ficar parado olhando para os quadros porque tinha muito tormento lá dentro. Aí vem uma idiota de uma repórter da TV e pergunta se os quadros estavam mais pesados por causa dessa situação que ele passou. Ele olhou pra ela e falou: “primeiro, você não tem noção do que está me provocando com essa pergunta. Segundo, tem as minhas dores sim, mas tem as suas, tem as deles, tem as de todo mundo.”

Então o artista, quando é de verdade, faz a captação de tudo isso. Tem que transformar, devolver, trocar. Eu não tenho isso. Meu jeito de estar no mundo é outro. Eu lembro em casa a gente lendo o jornal, e para a mesma notícia eu tinha uma reação e o Andrea (Tonacci) tinha outra. Eu ficava notando o quanto isso é interessante. Então acho que é isso. Eu vou dar a minha melhor contribuição, que é essa (na montagem). Pode ser que um dia isso mude, mas até hoje não foi assim.

 

Você comentou no debate que a partir de agora vai se dedicar a montar materiais deixados pelo Andrea Tonacci…

Sim, eu vou montar. Tem um material só que eu vou ter que tomar muito cuidado, que é o dos depoimentos indígenas. Esse é muito delicado, porque pode trazer represálias para os índios.

A gente sempre conversou bastante sobre esses materiais, e o Andrea sempre fez muitas anotações sobre eles. Eu vou ter que fazer uma imersão nos materiais e nas anotações para trabalhar com eles.

 

Quantos filmes vão sair desse trabalho, e como você vai encarar a questão da autoralidade nessas obras?

Pelo menos uns três longas-metragens. Eu falo que ele vai ter que me ajudar (a montar). Sobre a autoria, eu vou estar trabalhando um material dele. Isso já está impresso no material. Vou ter que seguir aquilo que está ali dentro, fazer essa imersão até entender o que é que está dito ali, para trabalhar dentro disso.

 

E do que tratam esses materiais?

Tem um material que é a filmagem de uma viagem que ele fez. Eu sempre insisti muito para ele montar, mas o Andrea nunca quis. Ele falava: “só você que está vendo um filme aí.” É uma viagem dele com o Sidney Possuelo, uma das grandes vozes defensoras da causa indígena. Eles foram de barco para o Vale do Javali e o Andrea foi filmando tudo. É um material lindo, primeiro porque a câmera era uma maravilha, segundo porque o lugar é muito lindo.

Esse é um dos materiais, tem outros que eu preciso olhar. Tem a parte três d’Os Arara, que nunca foi montada. Na verdade o Andrea queria remontar tudo, mas como ele não está aqui agora, o I e o II vão ficar do jeito que está e essa terceira parte eu vou montar.

Também tem um documentário sobre o Serras da Desordem, que é uma coisa que estou juntando o material. Tenho bastante coisa porque acompanhei muito esse processo, e multas vezes estava com a câmera e gravava as situações, as reuniões com a equipe, então isso é uma coisa que eu quero montar.

Vou ter que me dividir, não sei se vou conseguir recursos para fazer esse filmes. Se não, vou ter que fazer outros trabalhos simultaneamente, mas eu vou fazer de qualquer jeito.

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