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“Era desse lugar que eu estava falando o tempo inteiro e ainda não sabia”

19/09/18 às 16:44 Atualizado em 21/10/19 as 22:45
“Era desse lugar que eu estava falando o tempo inteiro e ainda não sabia”

Foram nove anos entre a ideia inicial, surgida a partir de uma conversa com uma amiga colombiana, e o lançamento de Los Silencios na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, no último mês de maio. A intenção da cineasta Beatriz Seigner era filmar em Manaus, mas o rumo do projeto mudou quando ela conheceu a Ilha da Fantasia, como é conhecida uma região fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Peru.

“Era desse lugar que eu estava falando o tempo inteiro e ainda não sabia”, pensou Bia antes de começar a reescrever o roteiro sobre uma família (formada por uma matriarca, uma filha e um filho) que foge de um conflito armado e reencontra o pai, antes dado como morto, cuja perda levara a mãe a pedir uma indenização ao Estado.

A coprodução entre Brasil, Colômbia e França fez a sua estreia brasileira dentro da mostra competitiva de longas-metragens do 51º Festival de Brasília, em sessão conjunta com o curta-metragem Kairo (leia entrevista com o diretor Fabio Rodrigo).

Leia a seguir a conversa do Cine Festivais com a cineasta Beatriz Seigner a respeito de Los Silencios.

 

Cine Festivais: Recentemente fiz algumas entrevistas a respeito do cenário de laboratórios de roteiros e de desenvolvimento de projetos e dos encontros de produção. A Laura Citarella, diretora e produtora argentina, acha que o aumento no tempo de produção pode proporcionar uma certa perda do fervor inicial que leva alguém a realizar um filme. O Roger Koza, crítico argentino, contou que conheceu diretores que, devido à demora no processo, tiveram dificuldade de se reconectar ao filme na montagem. Como o processo de Los Silencios foi muito longo, queria saber o que essas suas duas falas têm a ver com o seu caso.

Beatriz Seigner: Quando a gente viu que iríamos mesmo filmar, o que aconteceu no momento em que resolvemos que a história se passaria na Ilha da Fantasia, eu decidi reescrever do zero, porque lia o roteiro que eu tinha e não me identificava mais. O primeiro tratamento era de 2012 mais ou menos, quando comecei a mandar pra editais. E já era 2016 quando encontrei a Ilha da Fantasia. Nesse período eu tive um filho, um monte de coisa aconteceu, o tratado de paz aconteceu na Colômbia…

Para mim o processo de escrita é muito um processo de re-escrita. Raramente as coisas ficam, eu sempre reescrevo muito. E naquele momento foi uma coisa de pegar a página em branco, do zero, e reescrever, porque aquilo já estava muito distante de mim. A história é a mesma, lógico, os personagens são os mesmos, os conflitos são os mesmos. Mas eu reescrevi completamente já com a Ilha da Fantasia em mente. Foi o jeito que eu encontrei de fazer o filme que estava querendo fazer, de não ficar presa no roteiro inicial. Aí mandei para os meus coprodutores morrendo de medo de eles falarem: “Não, não foi nesse filme aí que a gente entrou! Que história de tanto fantasma assim?” Mas aconteceu o contrário, eles adoraram e eu tive carta branca para fazer.

Entrando na questão dos laboratórios: passei por algumas consultorias, tive boas experiências e outras não foram tão boas. A melhor experiência foi com o Miguel Machalski. Ele fazia perguntas muito boas. Um bom consultor de roteiro é que nem um bom psicanalista. Lendo o roteiro ele vai te fazendo perguntas pra você perceber lugares que talvez não estejam tão claros pra você mesma. Ou razões para tais escolhas, do tipo “nossa, por que estou fazendo esse arco?” É quase um espelho.

Já tive outros consultores que, ao contrário, vinham falando “ah, você tem que fazer isso, você tem que fazer aquilo.” Isso pra mim não funcionou, porque, sei lá, falei: “ah, ele faria outro filme, o meu filme não é isso.” E pra mim não funciona consultoria assim. Se vem alguém afirmar o ponto de vista, isso não me ajuda no processo criativo. Então eu tive muito os dois lados dessa experiência.

 

Por quantos laboratórios você passou?

Eu passei pelo Bolívia Lab, que tinha vários projetos latino-americanos, e todo mundo que estava participando falava do projeto de todo mundo. E a importância desses laboratórios é muito no sentido de você já ir apresentando projetos para captadores internacionais, programadores, então tinha pessoas que já conheciam o projeto desde aquela época.

Depois teve esse com o Miguel Machalski, passou pelo Brasil CineMundi também, foi muito bacana, e por alguns mercados. E na época em que ainda estava sendo finalizado ele foi exibido no Cine en Construcción, em Toulouse, e isso foi muito importante porque lá estava o Édouard Waintrop, que era o curador da Quinzena dos Realizadores.Então foi lá que ele assistiu o filme, em uma sessão super potente, e logo na saída ele convidou a gente para participar da Quinzena. Então foi essencial para podermos estar em Cannes.

 

Isso foi quando?

Foi em abril e Cannes era em maio. Ele inclusive perguntou: “Vocês conseguem terminar nesse tempo?” Acho que tinha umas seis semanas, lógico que a gente falou “sim”, que iríamos terminar o filme para estrear lá. Então são lugares de encontro que ajudam muito o projeto a encontrar parceiros internacionais, ver olhares de outras culturas, dar a cara a tapa… acho que vale a pena, me ajuda.

 

Você falou agora há pouco do valor de fazer as perguntas certas. No seu caso, você fez uma pesquisa extensa, com mais de 80 entrevistas, e se colocou nesse lugar de entrevistadora. Queria saber como foi isso: se você tinha um roteiro pronto ou era mais uma coisa de conversa aberta. E se você intervinha muito, ou ficava mais no lugar de alguém que ouvia aquelas pessoas.

Pra mim é muito mais de ouvir. Eu adoro ouvir a história das pessoas. É muito me deixar ser permeada por aquele universo, por aquelas questões, uma coisa de encantamento. Acho essa uma parte muito rica da pesquisa. Por mais que eu tenha lido sei lá quantos livros sobre toda a questão colombiana, e teses e doutorados e narrativas, por mais que eu tenha mergulhado na parte escrita, quando você está com pessoas que estão vivendo aquilo – mas não necessariamente tem a bagagem acadêmica -, é um material que eu vou jogando para o meu inconsciente.

Eu fico realmente ouvindo e faço algumas perguntas – tipo “do que você tem medo?” – que abrem para várias coisas. Eu pergunto pouco e escuto mais. E você ouve as histórias mais incríveis. Eu lembro até hoje de uma mãe que ficou no Brasil durante oito meses sem sair de casa, com cinco filhos, com medo de ser descoberta, porque ela era envolvida na guerrilha. Teve essa coisa dos fantasmas; quando fui à Ilha da Fantasia eles começavam a falar dos fantasmas que entravam no corpo das pessoas para que elas fizessem coisas que talvez eles não quisessem fazer.

Eu sabia que era um material que não seria usado no filme, mas eu captava o áudio. E nas melhores partes eles pediram para eu parar de gravar, e aí contaram umas coisas fantásticas. Então eu já tinha um primeiro esboço da história, que era essa mãe, as crianças, o pai que aparecia na casa…. Você não sabia se ele estava lá escondido para ela conseguir uma indenização ou se estava realmente morto e era um fantasma…. Enfim, eu já tinha isso em mente, mas tudo se transformou na hora de construir os personagens da Ilha da Fantasia, os conflitos deles.

 

Tem uma parte de “Os Dias Com Ele”, da Maria Clara Escobar, em que o pai pergunta pra ela: “Mas o que você quer dizer com esse filme?” E ela fala que o filme é sobre “silêncios históricos e pessoais”. Inclusive teve uma mostra depois com esse título, com filmes que tratavam da memória, principalmente ligada à ditadura. Nesse sentido eu queria que você falasse como que isso reverbera no Los Silencios e como que você imagina queo filme seria se fosse filmado em Manaus, como era a ideia inicial?

Eu percebi que em várias entrevistas as pessoas falavam sobre silêncio. Sobre não poder falar sobre o trauma que estava carregando, ter medo de revelar alguma coisa. O primeiro título era “Cinco Vidas e um Segredo”, e ainda tinha mais uma criança na história, que depois saiu para ficarem só essas duas. Enfim, era um working title. E quando eu comecei a mergulhar nos relatos, pensei que essa palavra de fato aparecia o tempo inteiro. Fiquei em dúvida se era legal colocar no título, já que é uma palavra que aparece no Bergman, e tal, e depois começaram a surgir vários filmes com títulos parecidos, o do Scorsese, depois o do Almodóvar… Aí eu pensei: “Ai, que saco, eles vão fazer antes de mim, vão conseguir o dinheiro mais rápido! (risos)” Mas no fim tudo bem, porque é super diferente, né?

Mas era muito presente nas conversas esse desejo de conseguir se comunicar com uma realidade paralela, de você querer falar com uma pessoa e receber o silêncio de volta. Pra mim é o som da morte. Me parece que a morte chega pelo ouvido, é esse silêncio, essa dificuldade de você conseguir se comunicar, que é um pouco a luta da Amparo, que fica rebatendo, fica falando, e fica cada vez mais aceitando esse silêncio de alguma maneira.

E aí depois, em termos de linguagem cinematográfica, eu gosto muito quando o silêncio fala, quando o silêncio grita. É uma coisa que pra mim é o melhor da linguagem cinematográfica. Pra mim os silêncios do filme são muito mais importantes do que os diálogos. Quando está no olhar, naquilo que acontece nesse lençol freático, nesse rio que passa embaixo e você vai percebendo… você não sabe exatamente o que é, mas vai transbordando.

 

A outra pergunta era sobre Manaus.

Ah sim! A coisa da Ilha da Fantasia caiu muito bem para ser esse não lugar, esse lugar em que você está entre os vivos e os mortos. Achei que a Ilha meio que materializava muito esse lugar de suspensão, de ter que esperar um visto, uma indenização. Você fica naquela situação em que tenta levantar a vida, mas você não sabe quanto tempo ficará lá.

Manaus também seria com essas casas suspensas e também teria o rio, né? Mas essa coisa da autogestão da Ilha é muito forte, de eles dizerem que não pertencem a nenhum país. Não era nem Peru, nem Brasil, nem Colômbia. Estão na fronteira. É mais perto da Colômbia, acho que legalmente deve pertencer à Colômbia, mas o governo não coloca luz, não busca o lixo, etc. Então tem essas fronteiras todas, todo mundo ali é imigrante…

Enfim, eu não consigo dizer como seria o filme se fosse em Manaus, porque reescrevi todo o roteiro depois que eu encontrei a Ilha da Fantasia. Foi uma coisa de pensar: “Era desse lugar que eu estava falando o tempo inteiro e ainda não sabia.”

 

Mas você chegou a fazer pesquisa de campo em Manaus?

Fiz bastante. A maioria dos relatos foi com os moradores de Manaus. Muitos deles. Há bairros específicos de migração. E o curioso é que depois descobri que os colombianos chamam Manaus de Miami da América do Sul. É engraçado, é uma visão que a gente nunca vai ter.

 

Você disse que o governo colombiano está ausente e que há essa ideia de autogestão. Como foi isso de chegar na Ilha com todo o aparato técnico do cinema? Pergunto isso porquea história do cinema é permeada por registros de pessoas de classe alta que vêm filmar pessoas de classe baixa, e isso muitas vezes resultou em um certo viés exploratório. E hoje se questiona muito isso: como estabelecer contato com aquelas pessoas? O que se deixa material e imaterialmente depois que o filme acaba?

Realmente é um processo violento. Você interfere muito na vida das pessoas durante um período de tempo, e aí quando termina vem aquele vácuo, que pra gente também é forte, porque passamos por essa coisa de trabalhar 16 horas por dia, estar lá imerso no processo, filmando com todas aquelas pessoas…

Sobre os cuidados que tivemos: quando chegamos lá conversamos para saber se eles topavam fazer o filme. Passou pelas assembleias, todo mundo votou, não foi uma decisão de uma pessoa. E aí pensamos no que poderíamos levar de contrapartida. Eles pediram uma escola. Falamos: “A escola a gente não consegue construir, não temos essa condição, mas podemos construir uma casa que depois pode virar um centro cultural. E foi o que aconteceu. A casa em que a gente filmou virou o Centro Cultural Los Silencios, um lugar comunitário, que inclusive recebe as assembleias.

Eles pediram também tinta, papel, uma impressora que a produção deixou lá, um gerador… Enfim, tentamos de alguma maneira ter uma troca. Não só pelas pessoas que trabalharam no filme – teve uma distribuição de renda nesse sentido -, mas também deixar alguma lembrança boa, um legado positivo.

Minha maior preocupação era com as crianças. Porque os adultos, bem ou mal, escolhem estar ou não presentes. Acho que eles gostaram muito de a luta deles ficar registrada. Sinto muito isso com a Abuelita, “nossa, que bom que agora você filmou isso e todo mundo vai querer saber que querem expulsar a gente de lá.” Mas com as crianças eu ficava preocupada. Pensava: “poxa, a gente vai, e essas crianças vão ficar, como será a vida delas?” Então a gente contratou uma psicóloga que continua cuidando deles. E pessoas da equipe seguem em contato.

A gente fez o mínimo que podia fazer, não sei o que mais dava para fazer pra cuidar… e aí eu volto à questão de olhar. Eu jamais filmo o outro de uma maneira que eu não gostaria de ser filmada. Sei lá, às vezes você vê e estão filmando o pé da pessoa, machucado. Aqueles filmes que exploram a pobreza. Eu estou sempre tentando me colocar no lugar do outro, e aí vem a questão da dignidade. São pessoas que, por mais que estejam numa situação de poucos recursos, estão ali com a melhor roupa possível, super arrumadas, o cabelo arrumadinho para ir à escola. Às vezes não tem o que comer, mas o cabelo está arrumadinho para ir à escola.

 

E o desafio de lidar com os atores não-profissionais? Como você se posicionou no processo de preparação?

Então, eu vim do teatro, né? E sinto muita falta disso. Até falei que no próximo filme eu quero ensaiar, fazer todos esses jogos, essas cenas que a gente cria, essas improvisações…. E depois voltar pro roteiro, porque surgem muitas cenas nesses jogos. É um processo em que eu gosto de estar junto o tempo inteiro. Ao mesmo tempo é muito bom você ter um interlocutor, não ser eu que estou conduzindo. Estou participando, estou ali trocando, mas tem um interlocutor ali fazendo, buscando construir um corpo coletivo entre aquelas pessoas com experiências diferentes. Muitas vezes os não-atores dão aquele show e os atores profissionais ficam parecendo uns canastrões. Tem muito de achar um equilíbrio entre esses tons.

Mas pra mim a vida vem antes da arte, então eu não aceitaria nunca uma coisa que fosse violentar de qualquer maneira qualquer pessoa. E eu sei de processos bem violentos. Acho que não precisa, conseguimos conduzir a pessoa àquela emoção, que é muito real na tela, que funciona, e é tudo pelo amor, não pela dor.

A importância do processo com os não-atores era ensinar a entrar e sair daquela emoção. Porque eu sabia que iria conduzir a criança para umas emoções mais profundas, de dor. Tipo: “Seu pai morreu e você acabou de ver ele!” Se eu falar isso, a criança não vai entrar nesse registro, então criamos a cena do pai morto, criamos a cena do primeiro aniversário, criamos várias cenas para eles conseguirem ter essa memória muito viva. Aí quando entrávamos numa emoção que era muito profunda, no “corta” eu já sabia que tinha que entrar uma música para eles dançarem, a gente se abraçar e aplaudir, para eles verem que era um jogo e saírem dessa emoção. Eles tinham esse poder de sair. É tipo um “pode ir que a gente está aqui para te puxar de volta.” E ainda bem que o filme estava bem decupado, porque em todos os planos eu filmava as crianças primeiro e depois ficava com os adultos. Tinha essa prioridade, para não desgastá-los muito.

 

Falando nessa decupagem bem definida, havia alguma liberdade em termos de movimentação dos atores no quadro, ou era algo mais rígido?

Eu odeio quando o ator parece um robozinho. Quando você percebe que ele deu três passos, virou e falou, deu mais três, pegou o copo… Infelizmente, a coisa do foco faz com que vira e mexe tenhamos que colocar marcação, mas me dá nervoso. Então se eu preciso que ele vá até ali eu falo: “pega pra mim aquela pasta?” Tipo, a gente vai filmar e você tem que dar um motivo para ele fazer alguma coisa. Enfim, são pequenas técnicas.

Tento enquadrar muito com o som. O que você está ouvindo de mais longe? Aí você vê que a pessoa vai para o outro lugar no olhar. Eu falo muito durantes o takes. Na hora de montar o pessoal quer me matar, mas eu fico o tempo todo dirigindo ali enquanto está gravando. Porque pra mim é jogo.

A Marleyda Soto foi uma grande parceira aqui. Tudo que eu fazia, eles respondiam, me ajudavam com as crianças, faziam as crianças ficarem tranquilas, ficarem seguras. Então, quando ela chorava, as crianças choravam, havia uma conexão muito grande.

Enfim, tem uma liberdade de improviso quando estamos ensaiando, e aí a gente coloca a câmera. Mas eu sempre busco a naturalidade, a atuação que eu gosto é a atuação que eu não percebo.

 

E você não se apega a diálogos?

Nem um pouco. Pra mim atuação é voz. Então quando a pessoa fica pensando no diálogo, já acho que tira a verdade. Em poucos momentos havia algumas indicações. Por exemplo, a menina que vai falar que tem fantasmas na Ilha. Eu nem sei como estava o roteiro daquilo, mas sei queperguntei: “você lembra dessas histórias de fantasmas?” “Lembro!” “Então, ela ainda não ouviu sobre isso, conta pra ela”. Aí o jeito que ela falou dos fantasmas é o que está valendo. O que importa é a verdade no jeito que ela está expondo aquilo.

 

O curta Liberdade, também exibido aqui em Brasília, traz uma cena em que apresenta uma presença fantasmagórica de um modo muito comezinho, cotidiano, como se aquilo não fosse uma grande revelação para aquelas pessoas. Queria que você falasse sobre como lidou, no seu filme, com a importância da revelação, que não parece ser “a” questão do filme, surgindo diluída no meio daquele microcosmo social…

Tem uma coisa de fugir de um certo imaginário. Por exemplo, a mãe está ali sendo cuidada e cuidando ao mesmo tempo. Eu queria sair desse registro de “ai, olha o morto, corra!” Apesar de ser fantástico, não é o registro do horror. Pra mim era uma coisa nova isso de ver os fantasmas cotidianos, essa temporalidade não linear, esse “é tudo agora”.

Eu tinha essa preocupação, foi uma coisa que busquei no roteiro. Alguém tinha sugerido uma vez de eles terem cicatrizes. Eu falei “não, não é zumbi, ao contrário. Vamos por outro caminho, porque eles são uma potência de vida também.” Pode matar, mas eles continuarão ali lutando juntos, presentes.

 

Voltando à questão do roteiro, falando agora dos tipos de filmes que vão para festivais, pensando nesse aparato de que tem muita gente palpitando, muita gente dizendo como devem ser os filmes… Você sente algum tipo de padronização? Como você tenta desviar disso?

Eu ouvi que o nosso filme é muito original. Toda a percepção que eu tive é desse lugar de originalidade que está muito ligado à intuição. Não estou tentando agradar ninguém, estou tentando honrar aquilo que estou percebendo, e o que me toca eu suspeito que irá tocar o outro também. As revelações não vêm de forma pensada. Não é um truque do tipo “nossa, aqui, ao final do segundo ato, vou fazer uma revelação”… Nosso inconsciente absorve muita coisa, e elas vêm pra fora de outra maneira.

Eu não sei, essa questão dos palpites acho que é como terapia. Quão saudável é ir pra terapia? Você vai ficar ouvindo outra pessoa te falando o que você tem que fazer da vida? Não, cara, a terapia é pra se ouvir. Você conversa com as pessoas pra se ouvir. As mulheres – acho que com os homens é mais difícil -, tem muito esse costume de compartilhar muitas coisas com várias amigas. Sentimentos, intimidades, questões… Mas não necessariamente vamos seguir a opinião daquela pessoa; é mais pra gente se ouvir, porque é assim que nos entendemos.

Então pra mim a consultoria é muito esse lugar da terapia. Uma pessoa com conhecimento técnico que te faz boas perguntas. Por que isso está aqui? Aí, quando você vai responder, vê que realmente não tem coerência. Pô, de repente é legal você ter alguma cena que indique isso para eu poder compreender o que está acontecendo. Mas esse filme foi super arriscado. Até a exibição em Toulouse eu não sabia se iam entender quem estava morto. Porque eu construo julgamentos no roteiro para serem desmanchados. Então você começa achando que é um drama social, mas depois pensa que há algo de errado. “O que são aqueles pássaros ali quando ela sai da escola?” “Por que ela tem esse pai em casa e esses sons que a gente vai distorcendo?” A informação que você recebe tem que te fazer capaz de desconstruir o pré-conceito.

 

Queria que você falasse da cena em que aparece um noticiário na TV que fala sobre a questão da equidade de gênero na construção do tratado de paz entre as Farc e o governo colombiano. Conversei com pessoas que acham aquela cena um pouco literal demais, trazendo uma mensagem muito externa àquele universo.

São duas cenas que tem um atravessamento da mídia e dão essa temporalidade, de “quando se passa esse filme?” A primeira é quando a mãe está na escola, esperando o reitor, e você está ouvindo, fora de quadro, que começou o processo de paz com as Farc.Você vê que ela mergulha num outro estado de espírito ali. E depois você tem esse outro atravessamento, ao final do filme, quando a água do rio já está alta, com eles falando como está indo o processo de paz, alguns anos depois.

Pra mim era importante ter esse paralelo com o contexto geopolítico do que está acontecendo ali. Bem ou mal, interfere na vida das pessoas. Era bom ter essa informação de alguma maneira. Esse tratado de paz está acontecendo, e é esta cena que leva para a assembleia dos mortos, né? Porque ele vem falando: “chegou, vamos assinar os acordos de paz, etc” E ela responde: “Hoje os mortos vão discutir e ver o que eles acham, quer ir comigo?”

Sobre aquelas imagens, elas vieram de uma pesquisa feita com imagens de arquivo do início e do final do tratado. O que eu achei incrível ali é que os tratados de paz falam em equidade de gênero em todos os capítulos, além de falar de reforma agrária, de distribuição de renda, de justiça restaurativa, de não punitivismo, de reintegração… A equidade de gênero está em todo parágrafo, e a direita marcou território justamente aí. Fizeram uma campanha enorme no plebiscito dizendo que a equidade de gênero ia acabar com a família. Meu, é tão básico a questão da equidade de gênero, o texto fala em coisas tão mais perigosas para o capitalismo…

E é muito louco porque se você vê a questão do Bolsonaro, o que mais pega ali? O lugar da mulher. Essa coisa de cada um no seu lugar; um discurso contra as feministas. Pega muito profundamente a questão desse machismo estrutural, patriarcal, no mundo todo. Então me interessava pegar esse ângulo do tratado de paz. Pode soar como um discurso panfletário feminista, porque eu sou mesmo.

 

Sem sutileza”, pode ser uma crítica?

Pode soar, não tem problema nenhum. Mas ele me leva pra isso, pra assembleia dos mortos, que é o grande ápice do filme, e traz essa questão importante que é do olhar feminino e feminista sobre a questão da paz, a respeito do papel das mulheres na construção da paz. E a questão de serem mulheres negras falando é importante também. Não sei o quanto as pessoas percebem tudo isso, mas está ali.

 

*O repórter viajou a convite da organização do 51º Festival de Brasília

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