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Arte e vida em movimento: Julia Murat fala sobre o filme Pendular

21/09/17 às 15:15 Atualizado em 10/10/19 as 00:30
Arte e vida em movimento: Julia Murat fala sobre o filme Pendular

A cineasta Julia Murat trouxe ao 50º Festival de Brasília dois filmes bem diferentes: a ficção Pendular e o documentário Operações de Garantia da Lei e da Ordem, este último feito em codireção com Miguel Antunes Ramos. Exibido no primeiro final de semana do evento, o primeiro trabalho retrata o relacionamento de um casal de artistas, ela, dançarina, e ele, escultor; já a obra documental utiliza imagens de arquivo da onda de manifestações iniciada em junho de 2013 para traçar uma narrativa que visa culminar na atual situação sociopolítica do País.

A segunda obra ficcional de Julia – que antes havia feito Histórias que só existem quando lembradas (2011) – ganhou o prêmio da crítica internacional (Fipresci) na seção Panorama do último Festival de Berlim. “Também é político falar que afeto é necessário, mas soa esquisito. Não sei, realmente ainda estou tentando entender o que é o Pendular visto hoje”, diz a diretora sobre o filme que começou a ser desenvolvido seis anos atrás, antes da ebulição política atual.

No dia seguinte à exibição de Pendular no Festival de Brasília, Julia Murat conversou com o Cine Festivais a respeito desse trabalho, que chega ao circuito comercial nesta quinta (21).

 

Cine Festivais: O seu filme fala muito dessa coisa do desejo: o desejo de criar, o desejo de se relacionar. Queria saber, pensando um pouco no filme anterior de ficção que você fez (Histórias que só existem quando lembradas), de que ponto de você nasceram os desejos daquele filme e do Pendular? Como você diferencia essa vontade de pôr no mundo essas obras?

Julia Murat: Nossa, não sei. O Histórias… começou a ser pensado 12 anos antes de sair, é um processo muito longo. Ah, lembrei. Eu estava filmando com a minha mãe, a Lúcia Murat, o Brava Gente Brasileira, em 1999, e aí a gente foi para uma cidade onde o cemitério era trancado, que era o Forte Coimbra [localizado em Corumbá (MS)] – tem uma parte do filme que se passa lá. O cemitério é trancado e as pessoas quando morrem são enterradas com sete horas de distância. Fiquei fascinada com essa história, essa ideia de que de repente tem o cemitério trancado e você não pode morrer na sua cidade natal.

Eu gosto muito de literatura latino-americana, na época lia muito Gabriel García Márquez, e comecei a pensar nessa ideia: “então, na cidade não se morre mais porque você não pode ser enterrado”. E aí vem a ideia de falar de um velho que quer morrer e não pode morrer porque o cemitério está trancado e não poderia ser enterrado em sua cidade natal porque ninguém morre. E a personagem da jovem demora para aparecer, ela vai sendo construída.

Originalmente, era a personagem da velha, da Madalena, e chegavam carros, ônibus de jovens e pessoas, querendo chegar na cidade em que ninguém morria porque tinham descoberto isso, e as pessoas começam a invadir a cidade em busca da vida eterna, e era esse o conflito. Depois vira, na verdade, três jovens, e de repente vira um casal, e cinco anos depois vira só a personagem da menina, da Rita. Então é um pouco daí que o Histórias… sai.

Quando eu estava terminando ele, começou aquela pressão chata de segundo filme, “qual vai ser seu próximo filme”. O Histórias… tinha sido bem recebido, então entrou uma coisa meio de festivais perguntando “quando vai ser, qual vai ser o próximo”, uma coisa muito insistente, e eu meio querendo responder essa pergunta e não sabendo o que dizer. Na época estava começando a namorar o Mat (Matias Mariani, roteirista de Pendular) e aí eu acho que estava pensando muito sobre relação, e foi muito natural responder essa pergunta falando de relação amorosa.

E aí eu chamo ele pra escrever comigo, o que foi naquele momento um grande risco nosso, porque, enfim, a relação estava começando, não sabíamos se ia dar certo e, ao mesmo tempo, estávamos fazendo uma parceria criativa. Aí eu chamo ele pra escrever comigo e aí a gente começa a procurar um pouco o filme, sabendo que é um filme sobre relação, e eu queria falar sobre uma relação de muita paixão, mas na qual você tem dificuldade de falar as coisas. E aí surge disso.

Eu penso inicialmente em três imagens: uma é o soco na parede (que está no filme), outra era uma cena que antigamente terminava o filme, que também é baseada na Marina Abramovic, que era dos dois um de costas pro outro indo embora, dando tchau, adeus e terminava assim, e aí depois virou a ideia de cortar o cabo – eram essas três cenas. Eu proponho essas três imagens pro Matias, pra Flávia, que é coreógrafa, e pra Marina, que faz esculturas e pensa a conceitualização de esculturas na época, e a gente conceitualiza a ideia de equilíbrio meio juntos. O Matias entra com a gente criando a narrativa dessas três imagens e buscando compor com elas a ideia de criar uma relação sobre o não-dito.

Acho que os meus processos, na sua maioria, partem de conceitos, de ideias meio conceituais, a duplicidade velho-jovem, do equilíbrio da relação, coisas bem abstratas assim, e eu vou descobrindo a narrativa dentro desse conceito.

 

Agora falando sobre esses processos longos que você citou (Pendular começou a ser pensado em 2011 e Histórias… levou 12 anos para ser realizado). Esses intervalos fazem parte do amadurecimento do processo? Quanto tem também da questão prática, material, financeira?

No caso do Histórias… teve muito da questão prática. O roteiro já estava pronto e a gente não conseguia captar, só fomos captar internacionalmente. No caso do Pendular, a questão prática é que na verdade o dinheiro do Fundo Setorial demorou para sair e atrasou quase um ano. Mas foi só esse atraso, os outros seis anos foram meu processo criativo, que realmente é lento, porque preciso ir amadurecendo, minhas primeiras ideias são abstratas e conceituais e não têm densidade dramática. E tem também o fato de que tive duas filhas no meio.

 

Perguntei para você de onde vem o desejo de fazer esses filmes, e o Pendular, em certa medida, por ter começado em 2011 e ser exibido em 2017, pode ganhar outros tipos de interpretação. Com relação ao documentário Operações de Garantia da Lei e da Ordem (que também faz parte da programação do 50º Festival de Brasília), não entrando propriamente nas ideias dele, mas nesse gesto que você tem de ir ao encontro dessas imagens para propor um filme que reflita sobre junho de 2013 e sobre o que está acontecendo no presente. Como você faz a relação entre esses dois filmes, sendo um deles com esse longo processo e o outro partindo de uma urgência de “como lido com essas imagens”?

Pois é, vou entrar um pouco no documentário porque talvez exemplifique um pouco isso. Comecei a pensar nele em outubro de 2013, quando sinto que estavam acontecendo muitas prisões de maneira extremamente arbitrária, passou a lei da máscara, passou a lei 12.850 que organiza a ideia de organização criminosa envolvida com manifestação. Então eu estava muito assustada com a ideia de Estado de Direito e com tudo que estava acontecendo, e com necessidade de falar sobre isso. Mas, ao mesmo tempo, quando o filme surge, ele vem com uma ideia muito analítica, de pensar a grande mídia e o midialivrismo. E daí acontece um golpe no meio do processo, e a gente se vê também obrigado a responder a questões políticas.

Com o Pendular, isso de fato não aconteceu, mas ao mesmo tempo soa estranho um filme tão sobre relação amorosa estar sendo falado hoje. É um momento tão importante para se falar de política, e esse filme vai ter esse espaço? Então, não sei, soa esquisito mostrar ele agora, mas ao mesmo tempo a gente também precisa falar que afeto é necessário. Também é político falar que afeto é necessário, mas soa esquisito. Não sei, realmente ainda estou tentando entender o que é o Pendular visto hoje.

 

Em certo sentido, a premiação do ano passado aqui em Brasília tinha essa ambivalência. Havia um filme que é um marco político, o Martírio, e tinha um filme que tratava mais das questões afetivas, que era o A Cidade onde Envelheço. São coisas difíceis de colocar na mesma balança…

Claro. É, acho que o júri vai ter esse mesmo problema agora, porque de fato é isso, a gente tem o filme do Adirley (Queirós), o filme do Marcelo (Pedroso), são dois que sei [que levantam temas políticos], os outros não conheço. É difícil mesmo a gente pensar qual é o espaço que o cinema pode ter e pode se dar ao luxo de ter nesse momento tão delicado.

 

Falando do desenvolvimento do roteiro, algo que sempre me interessa saber é como que esse grande número de laboratórios de desenvolvimento de projeto/roteiro afeta os realizadores e as suas obras. Como você sentiu isso no caso do Pendular?

Cara, isso é delicado, vai muito de realizador a realizador, mas sem dúvida existe uma certa pasteurização do cinema a partir do momento que você passa a ter cinema do mundo inteiro participando dos mesmos laboratórios, e por isso sendo influenciado, sendo analisado e sendo pensado pelas mesmas pessoas. Isso naturalmente tende a um aspecto gigantesco de culturas começar a ser visto com olhares estéticos mais ou menos parecidos. Isso é delicado. E acho que os organizadores desses laboratórios têm um pouco de consciência, mas não tanto quanto deveriam, desse lugar de influência.

Ao mesmo tempo, pra mim é muito essencial um processo de laboratório de roteiro assim, justamente porque sou uma pessoa que demora um pouco no processo criativo, então pra mim é muito importante participar, discutir, repensar, assumir minhas decisões. No Histórias…, por exemplo, em todos os laboratórios que ele passou, todas as pessoas exigiam que o filme começasse pela menina – soava muito estranho que começasse o filme pela Madalena, e essa foi uma decisão que tive que ter muita certeza dela pra não fazer o filme que os laboratórios pediam. Acho que é difícil mesmo, o quanto eles estão influenciando a cinematografia mundial e o quanto a gente pode se permitir influenciar, o quanto precisa também se colocar e falar “aqui não”, “esse é meu limite”, “essa decisão eu tenho certeza”.

 

Queria falar também um pouco dessa repercussão internacional e dessa vinda do Pendular para a estreia nacional. É claro que são casos diferentes porque envolvem questões ligadas a grupos contra-hegemônicos, mas nos últimos dois anos houve casos no Festival de Brasília em que filmes estrearam muito bem recebidos no Festival de Berlim, caso do Antes o Tempo Não Acabava e do Vazante, e que quando chegaram aqui a recepção foi para um outro lado, mais de rejeição. No caso do seu filme, você teve uma aceitação internacional muito boa, recebeu prêmio da crítica em Berlim na mostra Panorama, então como você lida com esses tipos de recepção diferentes a cada público?

Engraçado isso, porque sinto que não é a cada público. A estreia internacional e a estreia aqui geram um nível de ansiedade, de medo, de nervosismo de colocar o filme no mundo. Depois que passou em Berlim, as outras sessões todas que fizemos, nos Estados Unidos, Holanda, Taipei, Uruguai, em todos os lugares que passamos foi tranquilo, porque o filme já tinha estreado em Berlim. Mas aqui não, aqui eu estava muito nervosa, no mesmo nível que estava em Berlim ou talvez mais, porque realmente é outra coisa você ser visto pelos olhos da pessoa que conhece a cultura, né.

E inclusive é delicada a relação com o Pendular, né, porque ele poderia se passar em vários lugares do mundo, o Brasil não está tão explícito dentro dele. Isso lá fora é até curioso, porque as pessoas vão pro filme esperando ver mais de Brasil, enquanto aqui ninguém tem essa exigência, ninguém vai ver o Pendular exigindo ver mais Brasil, mas não sei o quanto as pessoas se reconhecem. Estou realmente tentando entender como foi a recepção, ainda não sei, e como será – a gente vai entrar em cartaz essa semana – e como será a recepção em geral. Mas é um novo monstro gigante gritando (risos).

 

No filme há pouquíssimos planos do ambiente externo, e geralmente a câmera tem essa coisa de sempre recuar quando os personagens avançam com relação à cidade. Nesse aspecto, como você trabalhou essa questão do extracampo e da importância do Rio de Janeiro para aquele contexto?

Acho que acima de tudo tinha um medo muito grande de parecerem dois personagens… – eles são obviamente privilegiados, né, são pessoas de classe média alta, enfim, e temos que ter noção desse privilégio – mas ao mesmo tempo, tinha um medo de que eles fossem… “Como assim eles têm um galpão gigantesco no meio do Rio de Janeiro num lugar onde existe o metro quadrado mais caro da América Latina?”… A questão era como a gente poderia construir uma realidade em que era possível ter um galpão gigantesco, em que eles eram artistas e precisavam ter esse espaço numa cidade onde a questão do custo de vida e do custo do território é tão gritante. E a decisão foi construir isso a partir do som, né.

A gente filmou do lado da Cadeg, que é meio o lugar de distribuição de grãos no Rio, que é o lugar de fato onde tem muitos galpões e é extremamente mais barato que na zona sul, obviamente. E tem uma sonoridade muito particular, né, porque você tem muito barulho de caminhão porque eles estão atravessando para pegar os grãos, tem muito barulho de rádio passando pela rua, de pessoas botando música alta, cachorro latindo, uma série de escolhas sonoras que fizemos para reconstruir e construir um ambiente de cidade, de baixada ligada ao centro da cidade, pelos caminhões e tal. Então realmente a gente reconstruiu toda construção do que seria o Rio de Janeiro a partir do som.

 

Vendo os créditos do filme, me chamou a atenção as cabeças de equipe quase exclusivamente ocupadas por mulheres – a única exceção me pareceu ser no som. Numa reportagem recente do Cine Festivais sobre mulheres diretoras de fotografia, algumas diretoras (como Marina Person e Laís Bodanzky) contaram que só perceberam isso como questão (“por que estou chamando só homens para postos-chave das equipes?”) ou passaram a pensar sobre isso só muito recentemente. Queria saber como se isso se deu no seu caso, se é um gesto político, se é um gesto natural.

Não foi um gesto político pensado previamente. Provavelmente o próximo será, e aí será não por questões de gênero, mas por questões de raça, porque no meu filme não tem negros e acho que isso é grave. E só, de fato, me atentei a isso muito recentemente. No caso do Pendular, a escolha das mulheres foi uma coisa muito natural, foram as pessoas com quem a gente se identificava, pessoas em quem eu acreditava na parceria – por acaso são todas mulheres, talvez não por acaso, talvez justamente porque é um filme muito feminino. Encontrar esses olhares que conseguiam entender esse feminino e reproduzir, construir, opinar e colocar sua marca acho que naturalmente veio muito de mulheres.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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