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Filme que segue corrente de ar mostra diferentes transformações no Ceará

15/03/16 às 17:03 Atualizado em 13/10/19 as 23:17
Filme que segue corrente de ar mostra diferentes transformações no Ceará

Do litoral até o interior do Ceará, o vento Aracati percoremais de 300 quilômetros em municípios cortados pelo Rio Jaguaribe. Já citada na literatura de José de Alencar e em estudos científicos, a corrente do ar foi alvo do interesse artístico das diretoras Aline Portugal e Julia de Simone durante ao menos seis anos, período em que realizaram os curtas-metragens Estudo para o Vento (2011) e Vento Aracati (2014) e o longa Aracati.

Este último fez a sua estreia nacional na 19ª Mostra de Tiradentes, depois de ter sido exibido na competição de médias-metragens do tradicional Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, na Holanda.

“Quando a gente escutou a história desse vento que passa na mesma hora e que as pessoas vão para a calçada esperá-lo, acho que isso gerou uma visão muito romântica da nossa parte lá atrás, de chegar no sertão e ver as pessoas esperando o vento. Acho que o filme parte desse lugar. Conforme a gente começou a frequentar esses espaços, entendemos que essa romantização estava na nossa cabeça”, diz Julia de Simone.

Em conversa com o Cine Festivais um dia após a sessão na cidade mineira, as cineastas falaram sobre o interesse provocado pelo tema e a respeito de outras questões ligadas ao filme.

No vídeo abaixo, realizado em parceria com a produtora Babuíno Filmes, você pode ver as principais falas da entrevista com Aline Portugal e Julia de Simone. Se preferir ler o que as diretoras disseram, transcrevemos abaixo a entrevista na íntegra.

 

 

Cine Festivais: Gostaria de saber sobre a formação de vocês e a ligação com o cinema.

Julia de Simone: Eu estudei Comunicação. A princípio não tinha nenhuma relação com cinema, nenhuma vontade anterior, mas depois eu estagiei em televisão e isso me levou para o audiovisual, que de alguma forma me despertou para o documentário. Aí eu fui estudar em Barcelona, fiz uma pós em documentário de um ano e meio, que foi onde realizei o meu primeiro curta.

Desde então os meus projetos pessoais passaram a existir de forma mais forte; tive um encontro muito feliz com a Aline (Portugal) e com o Marcelo (Grabowski) há alguns anos quando a gente criou a Mirada Filmes, que é a nossa produtora, onde temos desenvolvidos coisas juntos.

Aline Portugal: Estudei Comunicação também, mas em uma faculdade em que o curso de Cinema era dentro de Comunicação, então me formei em Jornalismo enquanto habilitação, mas fiz praticamente toda grade de Cinema do curso. Foi onde comecei a trabalhar com cinema, fazer curtas, trabalhando nos curtas dos outros também. Depois fui trabalhar com televisão e roteiro, a gente se conheceu na (produtora) Conspiração, e foi quando começou tanto o Aracati quanto a ideia da Mirada (Filmes). A gente investiu cada vez mais em pensar cinema e encontrar formas de fazer e produzir.

 

CF: Como vocês descobriram a história desse vento e como surgiu o projeto do Aracati e dos curtas decorrentes do processo?

JS: A primeira vez a gente escutou uma pessoa falando que tinha um vento no Ceará que passava todo dia na mesma hora. Ficamos muito intrigadas com isso e começamos a querer desenvolver esse projeto, mas a gente não conhecia o Ceará. Aí a gente fez essa primeira viagem, que foi em 2009. Foi pra fazer pesquisa, fomos filmando com uma câmera pequenininha que a gente mesmo fotografava, e desse material de pesquisa surgiu o primeiro curta, que se chama Estudo para o Vento, que foi a nossa primeira abordagem tanto fisicamente, de ir lá conhecer, quanto esteticamente, de como a gente poderia trabalhar as questões dessa região.

E aí são sete anos de 2009 para cá, o projeto foi se transformando muito ao longo desse tempo. A gente nunca deixou de ir para o Ceará, estabelecemos relações muito importantes lá, com muitos amigos, e uma parceria com a produtora Alumbramento, que é coprodutora do Aracati, e cada vez isso ia trazendo mais elementos e questões para o filme. O projeto foi se modificando ao longo desse tempo até a gente conseguir dois editais de curta que foi o financiamento que a gente teve para fazer o longa.

 

CF: Sobre o formato, vocês sempre tiveram na cabeça a ideia de fazer um longa?

AP: O primeiro curta, Estudo para o Vento, foi um material de pesquisa, foi a gente se debruçando sobre ele e entendendo como a gente conseguiria montar alguma coisa que pudesse dar mais potência a essa investigação estética. Depois entendemos que havia muito mais questões e que a gente precisava de um fôlego maior para desenvolver, já pensando que a gente faria algo um pouco mais alongado; inclusive pela temporalidade que o filme propõe, ele demandava um tempo maior.

E aí a gente ganhou esses editais de curta, que nos possibilitaram ter mais tempo, de ficar lá filmando mais tempo, de montar durante um tempo mais longo. Acabaram sendo as formas que a gente foi encontrando para fazer esse filme, que a gente já sabia que precisava ser mais alongado.

JS: O projeto chegou a ser de curta-metragem, acho que a gente foi aprofundando essa investigação e aí foi entendendo que precisava de tempo realmente.

 

CF: Vocês falaram que durante as idas para o Ceará vocês viram que o local estava se transformando e que o filme se transformou junto. No que vocês acham que o filme se transformou?

JS: Quando a gente escutou a história desse vento que passa na mesma hora e que as pessoas vão para a calçada esperá-lo, acho que isso gerou uma visão muito romântica da nossa parte lá atrás, de chegar no sertão e ver as pessoas esperando o vento. Acho que o filme parte desse lugar. Conforme a gente começou a frequentar esses espaços, entendemos que essa romantização estava na nossa cabeça. O vento está lá, as pessoas estão lá, ele passa na mesma hora, mas ele é mais um elemento entre todos aqueles que estão naquele lugar. Não tinha essa relação tão especial e poética como de alguma maneira eu acho que a gente pressupôs lá no início.

E aí, com esse envolvimento que a gente foi desenvolvendo com o lugar, com as pessoas, a gente foi se dando conta do que estava acontecendo naquela região, o quanto que aquilo estava se transformando; cada vez que a gente voltava lá era uma coisa diferente, cada pessoa que a gente conhecia trazia uma questão diferente. Todas essas coisas que têm na região, os açudes, a eólica, a Chapada do Apodi com os agrotóxicos… são uma série de questões que estão concentradas naquele mesmo espaço que eram muito radicais e violentas, e aí a gente achou que esse era o filme que a gente estava encontrando naquele lugar. Então a gente vai guiada pelo vento, mas tentando olhar para aquele espaço de uma maneira um pouco maior do que só da questão do vento propriamente.

 

CF: Havia durante essa investigação alguma espécie de roteiro ou de caminho que guiava isso, ou esse pensamento sobre a concatenação das imagens foi ser realizado apenas na montagem?

AP: Na verdade a gente fez uma pesquisa anterior, o Victor Furtado foi também encontrar essas paisagens e esses personagens, filmou algumas coisas, e a partir disso a gente fez uma espécie de roteiro. Tinha já essa proposição de sair do litoral e adentrar o sertão pela rota do vento. Isso já era o primeiro guia, que é a própria trajetória geográfica de ir adentrando esse interior.

E depois teve um roteiro que a gente fez pensando também como poderia se relacionar com esses personagens, questões que nos interessavam, situações a serem filmadas, paisagens, elementos que nos interessavam. Então tinha, mas chega lá na hora as coisas vão se reconfigurando. E depois, na montagem, a gente nem voltou tanto a esse roteiro, partimos das imagens mesmo, e fizemos um roteiro de montagem para pensar a estrutura a partir do que as imagens diziam.

 

CF: Quanto material foi captado? Houve muitos personagens que ficaram fora do corte final?

AP: Acho que a gente filmou umas 30 horas. Tinha alguns encontros e também mais material com os personagens que estão no filme e com outras pessoas.

JS: Tem todo um bloco que caiu que era sobre essa cidade que foi inundada pelo açude e que foi reconstruída em outro lugar, com todos os moradores transferidos para lá. A gente chegou a filmar nessa cidade (Jaguaribara Nova), e tudo isso não entrou, a gente achou que não cabia nessa montagem final. Tinha uma coisa de pensar sobre os rastros daquilo que estava sendo apagado, ou inundado, nesse caso. Ir para a cidade nova era outro capitulo que não cabia, acho que isso foi o mais grosso que caiu.

 

CF: O início que remete a uma ficção científica foi pensado desde o início?

AP: Sim. Era muito importante para nós entender de que maneira a gente iria enquadrar aquela paisagem e aqueles elementos, porque isso também produz muito sentido para o filme. E essa ideia do começo como quase uma ficção científica – a gente ficava brincando que parecia um terreno lunar, porque realmente é muito estranha aquela paisagem, aquele cara com aquela vestimenta de bota e capacete naquele calor dos infernos, passa o dia naqueles aerogeradores -… realmente, em relação ao modo de vida que se estabelece naquele espaço ao redor, e das pessoas que foram deslocadas dali para que isso estivesse presente também, era muito extraterrestre mesmo, e a gente quis emprestar esse olhar para essas paisagens.

 

CF: É possível encontrar uma linearidade narrativa na maneira com que o filme foi montado:

JS: Eu acho que ele é linear geograficamente, porque a gente vai entrando no sertão e a paisagem vai se transformando, a relação com a paisagem vai se transformando. Nesse sentido eu poderia pensar em algum tipo de linearidade, mas não sei se de outra forma… Mas acho que é um filme de viagem, de deslocamento, e aí necessariamente isso acaba sendo uma linha.

 

CF: Quais foram as principais referências buscadas por vocês sobre a questão do vento?

AP: Buscamos em todas as áreas, em pesquisas científicas – lemos a tese de um físico cearense sobre o vento Aracati -; na literatura – José de Alencar fala do Aracati em Iracema, também lemos A Casa, da Natércia Campos; o Dorival Caymmi na música; o Joris Ivens no cinema, com Uma História do Vento e Chuva.

JS: Tem dois filmes muito importantes. Um é As Vilas Volantes, do (Alexandre) Veras, que é uma pessoa próxima que a gente admira muito. O Vilas é um documentário sobre cidades que vão desaparecendo porque as dunas vão se movendo com o vento e elas vão sendo soterradas. O filme é muito mais do que isso, mas está lidando com coisas muito próximas e para a gente era muito importante pela maneira como olha para esse lugar e essas transformações.

Tem um outro documentário chamado O Céu Gira, de Mercedes Álvarez, que também foi importante para esse processo. Ela filma uma pequena vila no interior da Espanha que está desaparecendo, porque a própria diretora foi a última pessoa a nascer nessa cidade, ninguém nunca mais nasceu ali e as pessoas estão só indo embora. Ela volta para filmar o desaparecimento desse lugar. É completamente diferente, são outras questões, é um filme em primeira pessoa, mas a maneira como ela se relaciona com aquela paisagem e como esses elementos estão combinados ali era bem importante pra gente.

 

CF: O filme trata muito sobre o tempo também. Talvez o vento seja o único elemento constante naquele lugar…

JS: O primeiro personagem fala um pouco da mudança do vento também. Então talvez até o vento esteja mudando; ele diz que costumava passar na hora tal e agora tá passando mais tarde, ou o vento parou, então tem uma inconstância que está em tudo. Talvez não haja nenhuma certeza ou materialidade eterna ali, está tudo em movimento, e acho que o filme busca justamente esse movimento.

AP: Em relação ao tempo eu acho que também tem uma vontade de incorporar o tempo nesse espaço. Esse espaço em conflito e essas tensões que coexistem ali também são tensões temporais que estão convivendo e coexistindo no mesmo espaço, então a gente tenta especializar essas dimensões temporais, que eu acho que são importantes para lidar com essas transformações; a gente queria mostrar como o próprio espaço continha essas tensões temporais.

 

CF: Como foi a experiência de estrear o filme em Amsterdã? Depois queria que vocês falassem também sobre Tiradentes…

AP: A experiência em Amsterdã foi em um festival muito grande, o IDFA. A gente nunca tinha participado de um festival desse tamanho, então foi muito bom por um lado, porque havia sessões cheias e também porque é um festival que tem muita indústria, tem um mercado muito forte. Muita gente vê o filme, e isso dá uma visibilidade importante. Ao mesmo tempo, é um festival que a gente discute menos os filmes, discute só no final da sessão. A cultura ali é muito mais de distribuição de mercado. A gente conseguiu ver poucos filmes, discutimos o nosso próprio mais no final das sessões.

Já juntando com a pergunta de Tiradentes, eu acho que são experiências radicalmente diferentes, e ambas são importantes para o filme de forma diferente. Aqui (em Tiradentes) tem essa vontade de cinema, de a gente ficar discutindo, conversando, desdobrando o filme, vendo outros, tentando criar relações, conexões, e isso é algo que em termos afetivos é muito potente.

JS: O IDFA possivelmente abre portas para o filme, a gente tem a possibilidade de exibir em outros festivais lá fora, de vender o filme para a televisão, e isso é maravilhoso, eu quero que ele seja cada vez mais exibido. Mas eu acho que aqui em Tiradentes a gente consegue estender o filme para além da tela.

Acho que ano que vem a gente vai fazer uma exibição no sertão pelos lugares onde a gente filmou, e isso é muito importante para a gente conseguir fechar esse ciclo de alguma forma. Não dá para não passar por isso. Acho que a importância das exibições vai por muitos caminhos diferentes, e todas elas são importantes, se complementam, e dão conta de uma determinada demanda nossa para realizar o filme.

 

CF: Como está sendo a experiência de passar o filme na Mostra Aurora?

AP: Tiradentes é um festival muito importante. A gente sempre vem, discute, tem ótimos encontros, e aqui vai se constituindo uma visão de cinema, encontros e trocas muito fortes. Nós duas já tivemos filmes aqui em outros anos, a Julia com O Porto, eu com Frineia, e agora passar na Aurora é muito bom também por isso.

Nesse ano foi especialmente bom pelo tema dos espaços em conflito, que era uma questão sempre muito forte pra gente enquanto fazíamos o filme, de pensar como a gente vai lidar com essas forças que coexistem. Fora isso, discutir, poder estar aqui no debate, conversar, todo mundo no meio da rua vindo te parar, querendo desdobrar o filme, saber mais… isso é muito bom

JS: Aqui talvez estejam os filmes contemporâneos brasileiros que foram mais importantes na nossa vida nos últimos anos. Eu venho para Tiradentes desde 2010 para participar, independente de filme ou não, e os filmes que eu assisti aqui certamente mudaram a minha vida e a minha visão de cinema. Estar em diálogo com isso, também poder trazer e colocar de volta alguma coisa que eu estou sempre recebendo, é muito prazeroso, me sinto parte disso de uma forma muito legal.

 

CF: Qual vocês acham que é a principal diferença de Tiradentes em relação aos outros eventos do tipo no Brasil, e quais outros festivais brasileiros vocês admiram?

JS: Adiferença mesmo é a possibilidade de as conversas serem alongadas. Nenhum festival tem um debate tão longo, no dia seguinte, em um outro espaço, com um crítico convidado só para pensar o seu filme. Quer dizer, a gente já está produzindo pensamento desde a hora que termina a sessão. É uma cidade pequena, está todo mundo aqui em função disso, então você encontra as pessoas na rua o tempo inteiro e eles estão vendo os filmes, discutindo sobre eles. Isso eu acho que não tem em nenhum outro festival no Brasil, e talvez nem em outro lugar do mundo.

Mas tem muitos outros festivais importantes e que me interessam no Brasil. A Semana dos Realizadores é um lugar que a gente participa e está muito perto, o Fronteira, que é um festival que surgiu há dois anos e tem uma proposta de passar filmes experimentais, uma coisa que não tem muito espaço nos outros festivais, é uma outra iniciativa que me interessa muito. O Janela do Recife. São muitos festivais legais.

AP: Tem também o Cachoeira Doc, que também tem essa cultura do encontro e de aposta da curadoria. O forumdoc.bh tem sempre um catálogo impressionante…

 

Veja também:

>>> Texto sobre Aracati

>>> Entrevista com Thiago B. Mendonça

>>> Entrevista com Miguel Antunes Ramos

>>> Entrevista com Tião

>>> Cobertura da 19ª Mostra de Tiradentes

 

*Aracati será exibido na Mostra Tiradentes SP, que acontece no CineSesc, em São Paulo, de 17 a 23 de março

 

** O repórter viajou a convite da 19ª Mostra de Tiradentes

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