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Adirley Queirós fala sobre Era Uma Vez Brasília, seu filme de anticlímax

27/09/17 às 19:05 Atualizado em 10/10/19 as 00:55
Adirley Queirós fala sobre Era Uma Vez Brasília, seu filme de anticlímax

O palco estava preparado para a consagração. Cine Brasília, sexta-feira à noite, casa lotada. Todos queriam ver o novo filme do diretor de Branco Sai, Preto Fica, trabalho que havia saído do festival de 2014 consagrado por público e crítica. Só faltou “combinar com os russos”, ou melhor, com o cineasta Adirley Queirós, que apresentou uma visão desoladora da situação do País em seu novo trabalho, Era Uma Vez Brasília.

“Esse anticlímax que se estabelece pra mim é muito interessante. Eu não estou pactuado com o espectador, não estou pactuado com as pessoas pra quem eu faço cinema”, comenta Adirley. “Acho que talvez as pessoas tenham ficado até o final da sessão esperando uma catarse, mesmo não tendo catarse no filme todo, mas acho que o que eles ficam putos é porque no final não há catarse – mas nós nunca prometemos uma catarse nesse filme, em momento nenhum, pelo contrário.”

A reação morna do público local resultou dois dias depois na entrega do prêmio do Júri Popular para o longa baiano Café com Canela, mas em compensação o Júri Oficial atribuiu três troféus ao trabalho: Melhor Direção, Melhor Fotografia e Melhor Som.

Um dia após a exibição de Era Uma Vez Brasília no 50º Festival de Brasília, o Cine Festivais conversou longamente com o diretor Adirley Queirós sobre esta nova fase que se estabelece em sua carreira com o novo filme.

 

Cine Festivais: Lembro que em outra entrevista perguntei se você sentia que o Branco Sai, Preto Fica trazia uma radicalidade de discurso com relação ao que você fez no A Cidade é uma Só?, e você me disse que achava que era uma tentativa de radicalidade, mas que ela iria continuar. Pensando no Era Uma Vez Brasília, como essa proposta de radicalização do seu cinema estava clara durante o processo do filme?

Adirley Queirós: A conversa do grupo [da Ceicine – Coletivo de Cinema de Ceilândia] era justamente essa: como que a gente podia radicalizar esse filme? O que estava muito claro é que a gente procuraria uma narrativa usando poucos elementos e buscando entender como que esses elementos (cenário, fotografia e som) estariam ligados principalmente a uma ideia de deslocamento. Então tinha essa radicalidade sim, essa vontade de fazer um filme que estivesse fora de uma curva como a do Branco Sai, Preto Fica, que tinha uma curva catártica, ou coisa assim. Então tinha essa vontade de fazer algo que saísse desse lugar.

 

Uma vez você me disse que fez o Branco Sai, Preto Fica para ser uma catarse, mas que quando viu ele em tela você sentiu muita melancolia. Acho que essa melancolia talvez esteja ainda mais presente no Era Uma Vez Brasília, e sem estar em tela essa ideia de uma ação concreta, como tem no Branco Sai, pelo menos naquela cena dos desenhos. Como você pensava isso da mobilidade e da imobilidade do filme, dos personagens?

O filme é basicamente constituído por três cenários: a ponte, a nave e o carro. A premissa inicial do filme é que esses lugares são vistos como prisões. O que o filme buscava era passar essa ideia de que a gente está num estado permanente de prisão, para a partir daí entender como podemos nos articular dentro desse estado permanente de prisão para combater alguma coisa. Era isso que o filme tinha enquanto premissa desses corpos em cena.

Lá no Branco Sai tinha muito essa vontade de fazer um filme que vai explodir Brasília, um filme que vai ser catártico, em que a música será muito presente, no qual as vozes das pessoas serão fundamentais; tinham todos esses elementos que seguravam o filme assim. Já o Era Uma Vez… é muito silencioso, quase não tem música, tem um ou outro encontro de diálogo e eles são muito vazios, porque estamos em um momento que é muito isso, né, cara? Esse discurso todo não leva a lugar nenhum. Há muito discurso e pouca possibilidade de que esse discurso se efetive entre nós enquanto uma ação.

Tinha uma coisa também de não adiantar ter os personagens conversando muito, se o que interessa pra mim nesse momento é toda a atmosfera que está ao lado. Então interessava pra gente os espaços, mesmo sendo espaços pequenos e fechados, como a nave, a ponte, o que seja. Por mais que a gente estivesse filmando na rua, a gente estava filmando na rua nesse espaço fechado, sabe?

É engraçado quando falam que o filme é parado, né? Tem constantemente gente caminhando pela ponte, o carro está sempre em movimento, aquela nave está sempre em movimento, a todo momento o filme tem uma ideia de movimento, mas é um movimento que tem que ser sempre imaginado, que não se concretiza no espaço do real, e sim da imaginação. Então existe a imobilidade política e existe a possibilidade de que esses corpos circulem nesses espaços. Era muito uma coisa que convergia: como que esses corpos circulam nesses espaços e como é que é essa imobilidade política?

 

Nesse sentido, Brasília foi construída para o pessoal andar de carro. Queria saber do simbolismo da queima do carro; o quanto isso também está relacionado a uma ideia de mobilidade e imobilidade?

Primeiro, assim, a gente queria queimar o carro. O filme foi feito pra queimar esse carro também, a gente queria fazer um filme que queimasse um carro, destruísse esse carro.  Tanto é que essa cena de queimar o carro não existia num primeiro corte. A ideia do carro queimar é quase também como o fim de um ciclo de cinema para mim, é simbólico para mim como cineasta. O carro está em todos os filmes meus, ocupa ponto central desde o Rap, o Canto da Ceilândia, do Fora de Campo… E a gente queria transformar esse carro todo pra ele não existir mais nesse filme, como se fosse uma passagem no filme. Então ele era muito mais simbólico pra mim do que simbólico num sentido de queimar um carro enquanto objeto de transporte.

E no filme ele tinha outra função: o carro trai os personagens. Eles falam: “ah, esse carro tá grampeado”, o carro liga sozinho… Então tem todas essas coisas que vão acontecendo, e pra gente o carro era a voz do Temer. Eles foram cooptados, foram cercados, acharam eles em algum lugar, e o carro era a voz do Temer. Então se ele é a voz do Temer a gente tem que destruir ele.

 

Em outra entrevista você questionou essa ideia do edital de baixo orçamento, apontando ele como uma certa marginalização da produção independente. Então você disse que considerava seus filmes, como o Branco Sai, como um filme de Sessão da Tarde, uma ideia que remete à diversão, à empatia com os personagens. Queria que você falasse se considera o Era Uma Vez Brasília um filme de Sessão da Tarde ou se ele dá uma guinada em termos de identificação com o espectador, se ele exige mais do espectador.

Toda minha trajetória cultural é de Sessão da Tarde, como também a de várias pessoas que estão aqui. Obviamente, para quem mora em espaço periférico, uma diversão de ficar em casa antigamente era ver filmes da Sessão da Tarde, então vi vários e tenho esses filmes todos no meu imaginário. Se o Era Uma Vez… pudesse passar num horário que fosse da tarde e tivesse tanta força quanto tinha aquela sessão, seria incrível. Mas acho que o filme foi construído de uma maneira muito pragmática em certo sentido. Ele é um filme feito pra gente questionar esse nosso lugar de cinema também. A gente queria negar um lugar que, de certa forma, querem colocar em torno da gente.

Porque assim, o Era Uma Vez… lida tanto com questões existenciais quanto de tempo, é um filme temporal, um filme que lida com memória, com como a memória está sempre deslocada com relação ao tempo. E isso de pensar como a memória se desloca em relação ao tempo também transforma ele num filme existencial. O que sobraria desse filme então? Com quem ele de imediato dialogaria? Por exemplo, [a exibição no Festival de] Brasília pra mim foi um anticlímax. Não sei o que tu sentiu, por exemplo, mas em geral…

 

O Era Uma Vez? Sim, total.

Dá um anticlímax, tem uma expectativa muito grande.

 

Principalmente com relação àquele final do Branco Sai, né?

É. Então, esse anticlímax que se estabelece pra mim é muito interessante. Eu não estou pactuado com o espectador, não estou pactuado com as pessoas pra quem eu faço cinema; eu tô fazendo cinema. Não tenho obrigação de fazer um filme assim. O filme se constrói de acordo com o momento político, ideológico, estético de cada lugar, então não existe essa pactuação de fazer o filme de determinada maneira. Então não sei que espaço ele ocuparia se não fosse Sessão da Tarde, que espaço ocuparia enquanto cinema, sabe? Nem sei onde passaria, onde que ele acharia espaço para diálogo.

A sensação que eu tive com o Era Uma Vez… é exatamente a sensação que tive com Dias de Greve, iguaizinha, só que a pauta era outra. Naquele momento era pior ainda, porque eu tinha feito o Rap, o Canto da Ceilândia, que estourou, o público em Brasília riu, bateram palma pra caralho, o que inclusive me incomodou na época. Depois, em 2009, quando lancei o outro filme, tinha uma expectativa enorme, “o cara que fez o Rap”, e lembro que me perguntaram “por que você não seguiu o caminho do Rap?”, “por que você não foi nesse caminho de positividade, de todo mundo junto, unido?”. E no Dias de Greve foi exatamente o mesmo disso agora, porque é um filme que cai num vazio, dá uma deprê, as pessoas comentam pouco, muita gente não gosta, falam que o filme é triste, melancólico.

O que se esperava nesse momento então era um filme que estivesse antenado com a pauta política de Fora Temer. Meu filme não é Fora Temer, ele é anti-Temer. Eu não tô dizendo “Fora Temer”, eu tô dizendo “saia daí, usurpador, você tem que ser punido, condenado por isso, você tem que pagar por um crime de lesa-pátria que você tá fazendo de dilapidação de todo um imaginário brasileiro, dilapidação das leis de trabalho”, essas coisas todas. O que a gente tá falando com o filme é bem por aí.

Não sei onde ele caberia porque ele tem esse lugar desse vazio – que pra gente não é vazio. Quando você propõe um filme de anticlímax, obviamente as pessoas começam a botar ele de lado. Ele é mal recebido por essas pessoas que idealizam que a gente vá fazer um filme de combate, de embate – porque eu acho que é um filme de combate, é primordialmente isso, pessoas combatendo esse espectro que ronda – como diria Karl Marx (risos) – a ideia da política brasileira.

Agora, acho que é um filme que vai ter muita dificuldade de entrar nesses lugares da esquerda – obviamente da direita eles vão achar que eu sou retardado inclusive -, mas não vai ter muito espaço para entrar num espaço de uma certa esquerda, que também é militante, promove muito a unidade, pra quem todos têm que estar sintonizados com a pauta. Acho importante falar, pra não ficar mal entendido: obviamente que a pauta é a coisa mais importante que existe. A pauta política é a única coisa que pode fazer com que avancemos, a gente só consegue Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, acesso à universidade, cota em universidade se a gente tiver uma pauta política. Isso é fim de papo, deve ser uma obrigação nossa desde sempre. Mas fico pensando que o tipo de cinema que a gente faz é sempre anti-Estado. Porque o que o Estado quer com a gente é uma relativa cooptação. O que o Estado quer que façamos é uma publicidade da política deles, e acho que o cinema tem obrigação de ir no sentido contrário. Então nesse sentido o Era Uma Vez tá lascado, porque não atende uma pauta, nem atende expectativa, nem demanda e nem assume um compromisso que ele não pode assumir – ele não pode resolver as coisas, só pode entrar na profunda reflexão sobre as coisas. E com todas as contradições, porque o filme é totalmente contraditório.

A coisa é entender que o filme só poderia ter algum tipo de força se ele assumir a contradição que ele tem, que é: estamos fazendo um filme no meio de toda uma mobilização que se gerou sobre ele de expectativas, mas também de uma cobrança que ele não tem que atender. Se o filme tinha uma obrigação era ir contra essa tendência. Tentar de certa forma falar “não, peraí”. Não tô dizendo que a gente tem a certeza, a gente é ambíguo, contraditório, mas não podemos estar nesse coro. Tem algo errado no coro, tem algo errado aí. A gente é muito belo, é muito arrumado, está ficando muito gramatical, em todas as categorias. A gente tem muito a perspectiva do belo à frente de tudo. Então como a gente pode quebrar esse lugar da beleza, do discurso unificado? – e que perde a alma. Sempre todo mundo tem muita certeza do que vai falar…

Mas é isso aí, de como essa relação do que está pautado – e olha que eu sempre fui pautado, sempre fiz pauta, não digo no sentido negativo da palavra… Tô dizendo no sentido de que temos que ter cuidado com um certo moralismo nosso – eu falo “nosso” porque é dentro desse discurso que existe no cinema brasileiro, que está aqui [no Festival de Brasília], eu tô dentro também. Talvez não esteja dentro do recorte racial, mas tô totalmente dentro no recorte territorial. Se a gente ficar sempre preso dentro desse discurso, a gente corre o risco de ficar como se fosse um escudo defendendo só a gente mesmo. Porque o problema, num certo momento, não é como esse discurso é atacado de fora, o problema é como a gente vai promover o discurso internamente sem ele implodir. Porque também seria muito fácil chegar aqui e falar: “vocês estão errados, e tal”. Esse discurso pode implodir um movimento que é massa, um momento que é massa, mas ao mesmo tempo onde que a gente vai conseguir chegar na reflexão de que esse grupo que está aqui só vai se fortalecer se ele também entrar em conflito?

 

Você diz o grupo do cinema?

É, de todo mundo que está aqui, buscando a mesma pauta, que se identifica com a esquerda, com um tipo de cinema. Novos atores sociais, novos autores sociais, novos diretores, toda essa mobilização que existe em torno dos filmes. Como que a gente pode promover a reflexão sem causar uma implosão? A gente não quer implodir, porque isso é importante. O que há de importante no cinema brasileiro é o que está acontecendo em Brasília, isso é foda. O que está acontecendo nesses debates, essa galera que vai pros debates, que faz os filmes, novos autores, novas perspectivas, isso é o que é novo no cinema.

O Era Uma Vez Brasília acho que tem um negocinho que faz isso, pequenininho. Ele tem a expectativa de realizar essa provocação. Se ele é bem sucedido ou não, é outra história, mas a gente tinha isso como tentativa. Ou seja: estar dentro, estar junto, mas também colocando as contradições nossas. Não com a intenção de implodir o que está aqui dentro, mas também não temos que estar sempre antenados e alinhados com tudo.

 

O diretor Adirley Queirós

 

No festival deste ano eu vejo filmes refletindo de diferentes maneiras sobre esse impasse sociopolítico em que a gente está. O filme do Marcelo Pedroso implode uma tradição do documentário brasileiro e busca ouvir o outro sem pré-julgamentos. E você tem esse gesto de não dar respostas fáceis, de colocar a gente num estado de alerta. Como você vê esses outros trabalhos e como situa seu filme dentro desse jogo de proposições? Porque o que se espera são proposições para sairmos desse impasse.

Eu vi o filme do Marcelo Pedroso e acho que ele se coloca de maneira franca dentro do filme, e isso me agrada. Há dez questões em relação ao filme, há muito mais questões que o filme suscita, e por isso acho interessante, por suscitar muitas questões. Mas o Era Uma Vez Brasília, quando se coloca nesse lugar da resposta que não foi dada, tem uma coisa de quebrar uma tradição. Posso dizer que é quebrar a tradição dos filmes que eu faço. Dentro da minha filmografia é uma total quebra de tradição, quebra de modelo. Eu mudei completamente a forma como o filme seria feito, principalmente na montagem.

 

O filme do Pedroso levanta essa questão da necessidade de abrir o diálogo com quem não parte dos mesmos pressupostos que a gente. Muito se comenta dessa necessidade de alcançar pessoas não necessariamente identificadas com a esquerda, mas que estariam no centro desse espectro, e por isso seriam mais facilmente cooptadas pelo discurso da direita. Queria que você refletisse sobre como o filme poderia lidar com esse impasse.

Quando a gente faz um filme, a gente idealiza que ele poderia estar em certo lugar. Eu acho que esse filme não está em lugar nenhum. Esse filme não tem espaço em lugar nenhum nesse sentido. Não tem espaço nesse lugar histórico de uma certa esquerda, não terá lugar também nisso do meio termo. Porque a grande barreira pra chegar até lá é a barreira narrativa, cara. É como que esse filme está se colocando, como ele se coloca enquanto linguagem, textura, estética. De quando a gente opta por fazer um filme noturno, de quando a gente opta que a fotografia terá aquele peso, que o som terá aquele peso.

Porque as pessoas falam muito de som, de som, e é muito louco, cara, porque o que é forte nesse filme pra mim não é o que está fora de quadro, no som, mas é o que está em quadro, na imagem. É o contrário do Branco Sai pra mim. Nesse filme nós tivemos vários problemas de som durante muito tempo. Tanto é que várias pessoas mexeram no som dele, quatro pessoas mexeram no som: Guile Martins, Francisco Craesmeyer, Fernando Henna e eu. Não chegamos ao som que queríamos. Esse filme não atingiu nem um terço do som que a gente queria. A gente idealizou um som e não cumpriu, não fez esse som que a gente queria. A imagem a gente cumpriu e fez a imagem que a gente queria, entendeu? Então o primeiro problema desse filme está entre uma relação que a gente queria de som com o que a gente queria de imagem; faltou um som que tivesse a mesma reflexão que a imagem – não que o som não seja bom, o som é muito bom, mas esse som não tem o mesmo diálogo que a imagem propôs.

Então todos esses elementos, quando você propõe essas rupturas, de um som mais estranho, de uma imagem mais estranha, de uma montagem mais estranha, eles não têm lugar nenhum, porque as pessoas já te codificaram no tipo de cinema que elas querem, que esperam que você faça. Acho que talvez as pessoas tenham ficado até o final da sessão esperando uma catarse, mesmo não tendo catarse no filme todo, mas acho que o que eles ficam putos é porque no final não há catarse – mas nós nunca prometemos uma catarse nesse filme, em momento nenhum, pelo contrário. A gente está sempre fragmentando as possibilidades que temos de potência de organização, potência de discurso; todo o discurso se perde, se esvazia.

O cara vem assassinar o Juscelino Kubitschek, cai aqui, mas não se toca mais nesse assunto, ninguém fala mais do assunto. Ele está lá com os caras, ninguém sabe mais quem ele vai matar. Quando se forma o exército, eles começam ali, meio tosco, meio difícil, meio estranho, e no final ficam só quatro pessoas dentro de um carro. Tudo isso acho que o filme vai jogando no sentido de que não, esse modelo que a gente fez de juntar talvez não seja o certo, esse modelo histórico de partido não é o certo, esse modelo histórico de associações talvez não esteja certo, porque a gente não entende nem os conflitos e as contradições internas da gente. A gente não entende que é importante que essa contradição esteja nos filmes; contradição de pessoas, de tempo, de espaço.

 

Pensando nesse sentido dos personagens, acho que o próprio A Cidade é uma Só? e o Branco Sai geram uma empatia maior com os personagens por trazerem um background muito forte. Nesse filme existe, como você disse no debate, esse processo de etnografia da ficção, mas não é uma ligação tão radical como era com o Marquim no personagem dele no Branco Sai, não vejo isso tanto no personagem do Wellington Abreu e da Andreia Vieira. Algo que me chamou atenção nos filmes, tanto no Branco Sai quanto no Era Uma Vez, é uma coisa de que existem os personagens que estão prestes a se encontrar, mas você nunca mostra o encontro, que poderia ser algo mais emotivo, que apostasse mais em uma criação de identificação e empatia. Os filmes nunca permitem ao espectador esse reencontro, algo que no Branco Sai seria mais emocional (entre Marquim e Sartana) e nesse seria mais objetivo, nesse sentido da resistência. Por que essas opções?

Então, no Era Uma Vez Brasília o Marquim encontra o Wellington quando a nave cai. Ele encontra, eles nem trocam uma palavra, e depois de muito tempo eles aparecem juntos. A Andreia com o Wellington também, mesmo ela esperando muito pela chegada, ela não idealiza ele, não vê nele um cara salvador. A construção dos encontros, como a gente constrói o encontro no cinema, por exemplo, também é uma coisa muito dramática e sempre ancorada em pequenas muletas de roteiro. São truques de roteiro.

 

Criar expectativa e depois entregar.

Isso. No final são truques de roteiro que seguram o filme. “Ah, o cara que achou o diário do outro.” Nesse filme tinha isso. A Andreia estava escrevendo um diário. O filme sabe o que era? A Andreia escrevendo um diário sobre a aventura dela. O filme seria isso num certo momento. A Andreia escreveria o diário dela e seria a rainha do pós-guerra. O mundo acabou e só sobrou a Andreia, então o diário seria o primeiro fator de encontro, o que amarraria os encontros seria o diário. O filme nega isso também, em dado momento o filme abandona isso, porque o filme fala sempre de desencontros, não de encontros; o filme é um desencontro permanente. É uma geração que só se encontra no desencontro. O Umberto Eco fala isso em O Pêndulo de Foucault, “nós somos a geração perdida e só nos encontramos quando estamos juntos”. É o desencontro que traz a gente para um lugar, que é o lugar do acuado. Então eu fujo para um lugar e encontro o cara na fuga pra outro lugar.

O filme é esse, os três estão fugindo e eles vão se encontrar em postura de guerra na ponte. É na ponte que eles se encontram, e a ponte é uma prisão, então eles se encontram na prisão. Talvez essa seja a chave principal do filme, o desencontro que gera um outro encontro. Não é a promessa de que alguém virá nos encontrar; a gente se encontra pelo desencontro, a diferença é essa. Eu estando desencontrado vou me debater e vou chegar perto de outra pessoa que também está desencontrada.

Até o discurso é desencontrado. Fora a primeira fala do Wellington, de “vim a Brasília  para matar Juscelino”, não tem mais nada. A partir daí, só conversas soltas. As imagens organizam o filme, as imagens criam um espaço onde esses personagens desencontrados possam viver e sobreviver e existir, e o som teria uma função de desorganizar as imagens. O som nesse filme não era um som que casava com a imagem, o som ia bater na imagem. Essa era nossa grande teoria: como fazer um som que bate na imagem e dá um sentido? Mas não foi o que aconteceu. O som no filme junta com a imagem. Então isso é um lugar em que a gente não chegou ainda, pelo menos enquanto teoria. Se as pessoas vão gostar ou não, não me interessa, mas isso não chegou ao filme. As pessoas às vezes gostam mais do que foi feito hoje, gostam mais do som encontrando a imagem, que todo mundo tá falando que é maravilhoso… Eu tenho problemas sérios com todo o processo do som do filme, mas existe um embate… E olha que o Guile (Martins) é um cara maravilhoso, fodido, e só com ele eu poderia ser franco de falar isso, porque ele é muito franco também e é boa essa conversa com eles dentro dessa franqueza sobre o som. Mas é nesse embate que poderia surgir essas coisas, do embate entre imagem e som, que não existiu.

 

Voltando um pouco à questão política, queria rememorar aquela cena do encontro do Dildu com a carreata da Dilma em A Cidade é Uma Só?, agora chegando a esse momento da Dilma Rousseff abrindo o Era Uma Vez Brasília com o discurso se defendendo do impeachment. Em algum momento você chegou a lembrar daquela cena, que é muito marcante no seu cinema, para refletir como a aparição da Dilma nesse filme se relaciona com aquele momento?

Muito massa essa pergunta, não tinha pensado nisso não, mas isso que você falou tá lá sim. Naquele momento do A Cidade é Uma Só? acho que o filme dizia “isso que está acontecendo é um erro, essa aliança (PT-PMDB) é um erro, é uma traição de classe”.  Neste filme (Era Uma Vez Brasília) a gente está voltando com a Dilma pra fechar o ciclo, na verdade. Pra dizer assim: “pronto, comprovamos que essa aliança foi um erro”. E a Dilma surge de maneira melancólica agora. A voz dela não é mais uma voz por cima, a voz dela é uma voz de derrota, sozinha, solitária, ouvida por dois caras num carro velho perto de uma fogueira. A voz dela não é mais aquela voz que se impõe sobre aquele povo. Aqueles corpos inclusive estão ouvindo ela como um terceiro, quarto ou quinto plano, como se ouve um jogo de futebol, como se ouve uma notícia sobre o país. É, vamos dizer assim, a voz de um derrotado, de uma pessoa que morreu.

Eu não tinha pensado nisso não quando a gente montou, mas você falando assim é uma coisa massa de pensar, de como essas duas coisas se conectam. De como no primeiro longa que eu fiz surge a gente quase que acusando ela de uma traição de classe e nesse último a gente a está ouvindo como uma voz que se perde ali no meio das coisas todas. Mas mesmo assim, nisso tudo, muito mais perto dela (com relação à voz do Temer).

Há duas vozes no filme, uma é protagonista e a outra é vilã, obviamente. A Dilma não é herói, mas também não é vilã. Pelo contrário, ela estabelece o universo dos caras. E a voz do Temer estabelece o lugar de prisão dos caras. Então tem muito isso… E não foi muito comentado no debate como essas duas vozes são norteadoras do filme, mesmo correndo por trás, porque elas são as vozes do conflito brasileiro, Temer x Dilma. Dilma que representa todo esse lugar dessa nossa esquerda, dessa tradição de ir pra rua, do desenvolvimento social, e o Temer que potencializa essa voz de uma certa direita, do verde e amarelo, do Fora Dilma. Então essas duas vozes são centrais, e a voz da Dilma, você tem razão, tem um momento [em A Cidade é Uma Só?] que ela é uma voz que é impossível de chegar até ela, ela é a voz do poder, ela está massacrando o filme todo com aquela voz por cima, junto com o comício dela, e nesse filme é a voz solitária dela, sem nenhuma aliança, um discurso aberto. E isso carrega a alma do filme. Eu não tinha pensado nisso, que a voz dela no começo também carrega toda a alma do filme, vai carregando o filme também na solidão, na tristeza. Não há em quem se ancorar. Não sei, acho que é uma chave legal pra discutir, é pra pensar sobre.

 

Naquele discurso que ela fez no Senado, todo mundo sabia que já era. Era ela meio que abandonada aos leões e simplesmente dizendo “é minha honra, tô aqui, mas…”

É um discurso de despedida já, né. É, nem tinha pensado nisso, cara. Não era necessariamente o processo de reflexão pra pensar assim, mas a voz dela mobiliza… (pausa) Isso que você está falando é a pura verdade. O primeiro corte do filme que eu montei era a voz da Dilma entrando, e a partir da entrada dessa voz ela mobiliza a montagem toda. Você falou agora, isso era algo que eu já tinha feito, o primeiro ato da montagem é meu, de como essa voz da Dilma mobilizou todo o espírito do resto do filme.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

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