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A cumplicidade em meio a catracas: diretora fala sobre curta Estado Itinerante

20/09/16 às 18:04 Atualizado em 21/10/19 as 23:40
A cumplicidade em meio a catracas: diretora fala sobre curta Estado Itinerante

Da experiência diária no transporte público de Belo Horizonte surgiu o interesse da diretora Ana Carolina Soares pelas particularidades das cobradoras de ônibus. Durante a escrita do roteiro do curta-metragem Estado Itinerante, Ana conversou em diversas oportunidades com essas trabalhadoras e esteve atenta àquele ambiente. O passo seguinte foi apresentar o projeto do filme a essas mulheres e formar um elenco de atrizes não profissionais.

Diferente do posto de motorista – no qual ainda é incomum vermos mulheres conduzindo ônibus nas grandes metrópoles – a função de cobrador(a) já é mais diversificada em termos de gênero. Ao acompanhar a história da protagonista Viviana (Lira Ribas), novata que aos poucos estabelece uma relação de cumplicidade com as companheiras de trabalho, o filme aborda temas como a violência doméstica e o machismo, sempre de um modo não óbvio e cinematográfico.

Eleito entre os dez filmes nacionais favoritos do público no último Festival Internacional de Curtas de São Paulo, Estado Itinerante está na competição oficial de médias e curtas-metragens do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no qual tem a sua primeira exibição no sábado, 24 de setembro.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a diretora Ana Carolina Soares falou ao Cine Festivais sobre a sua trajetória e sobre diversas questões temáticas e estilísticas trazidas pelo trabalho.

 

Cine Festivais: Por aquilo que pesquisei, anteriormente você só havia dirigido um curta-metragem para cinema, como parte de sua formação pela UNA, em 2009. Por que houve esse ínterim tão grande até chegar à realização de Estado Itinerante, em 2016?

Ana Carolina Soares: Apesar de ter cursado cinema, a minha condição social não me permitia sair da faculdade e tentar viver de cinema realizando os meus projetos. Então fui trabalhar como assistente de direção, para TV, publicidade e algumas vezes em filmes.

Além do trabalho de AD, fiz vídeos autorais com amigos da faculdade em um coletivo que se chamava A Margem, trabalhei em outras funções em curtas, como direção de arte, produção, montagem e still e dirigi um episódio de uma série chamada Realidade Brasileira: Pensando com Maria Aragão, entre outros documentários institucionais.

É isso, fiz várias coisas e o tempo foi passando, só não passou a certeza que queria realizar filmes, porque desde quando saí da faculdade já tinha iniciado o roteiro do Estado Itinerante e começava a tentar os editais.

 

CF: A escolha do universo do filme é muito precisa. Ainda não é comum vermos mulheres dirigindo ônibus, mas a presença feminina é bem maior na posição de cobradora. Um plano do Estado Itinerante resume isso muito bem ao utilizar uma porta como elemento cênico que divide esses dois ambientes. Como se deu o surgimento dessa percepção de que poderia haver ali, entre as funcionárias de uma empresa de ônibus, um universo muito particular? Houve algum tipo de pesquisa de campo com funcionárias que executam essa função?

ACS: A minha percepção era diária, porque utilizo aquela linha de coletivo saindo do ponto final, e o meu interesse foi se intensificando com a construção do filme. Houve muitas etapas de pesquisa. Fui até o ponto final quando estava escrevendo o roteiro e conversei bastante com algumas cobradoras, gravando o som no celular, porque sempre abordava assuntos que faziam parte do tema do filme.

Depois dessa primeira abordagem fiz algumas amizades neste ponto final, e então quando algo acontecia nas viagens de ônibus e me interessava para o filme eu procurava conversar com a cobradora a respeito e sempre estava interessada na conversa delas com os outros passageiros.

Na pesquisa já para filmar eu mudei de ponto final, por uma questão espacial; este outro era mais interessante para a geografia do filme. Era outro, mas no mesmo bairro e estava próximo à garagem, o que me proporcionava entender mais do cotidiano de trabalho. Então eu comecei a levar a câmera e perguntar pra elas quem gostaria de participar do filme.

Eu já tinha as minhas preferências, mas deixei que elas se manifestassem e fomos fazendo vídeos. Mantive um pouco de mistério sobre o assunto do filme e quando já estava mais definido quais cobradoras participariam do filme eu conversei sobre o tema e elas acrescentaram falando de suas experiências, me fazendo mudar algumas coisas no roteiro para filmar.

 

CF: Estado Itinerante é, para mim, um filme sobre cumplicidade entre mulheres em meio a um mundo opressivo. O que chama atenção no seu trabalho é como, nos planos fechados, é possível ser transportado para momentos de grande afetividade, enquanto os planos abertos servem para relembrar os perigos que rondam aquelas pessoas. Gostaria que você falasse sobre essa lógica que adotou na direção.

ACS: A cumplicidade entre elas e os encontros que vão proporcionando isso foram um objetivo, porque é um filme feminista, onde as mulheres se apoiam, diferente do que é colocado na sociedade de que mulheres são rivais, para estabelecer competitividade que favorece a construção de estereótipos, entre outras coisas.

 

CF: É atribuída a Godard uma ideia de que os carrascos sempre deveriam ser filmados de frente e as vítimas, de costas. Não digo que tal conceito seja seguido em seu filme de uma forma rígida, mas sinto que de alguma maneira isso era uma questão para você. Em momentos de maior tensão (os motoqueiros passando ao lado do bar, o retorno à casa no final), predominam planos de Viviana posicionada de costas para a câmera, enquanto que em momentos de empoderamento (a conversa no bar, a caminhada depois de pegar suas coisas) isso se inverte. Como você pensou essa questão?

ACS: Os planos foram pensados fixos e compostos de forma que privilegiassem o extracampo quando Viviana estava em situações cotidianas como no trabalho. Nestas ocasiões eu precisava expandir o tema, e utilizar do extracampo para o quadro e para o som foi um recurso. Em momentos de tensão para a personagem, optei pela câmera disjuntiva, para criar uma situação persecutória e lembrar o espectador de uma outra presença, e em momentos que tratassem diretamente do seu relacionamento opressor que a câmera estivesse nas costas, mas não foi uma referência a Godard; o que pensei é que a personagem, assim como todas as mulheres que sofrem violência doméstica, não revelaria sua dor pra todos, então o espectador é privado do seu olhar nestes momentos. Também tinha como conceito ter a câmera apenas em locais públicos.

 

CF: Um quesito que chama atenção em Estado Itinerante é a qualidade das atuações, algo que não é tão fácil de encontrar em filmes de realizadores iniciantes. Qual foi o seu pensamento com relação ao tom das atuações?

ACS: Meu pensamento com relação à atuação neste filme era sempre voltado ao cinema de John Cassavetes e de (Michelangelo) Antonioni. Parece que são estilos que não se misturam, mas para mim fizeram todo sentido. O lugar que mais me interesso na direção é com os atores e não atores, como neste caso. Talvez o ínterim citado acima foi o que me ajudou como iniciante, porque durante esse tempo eu não parei e nem estive longe do cinema.

 

CF: Você chamou atenção durante a apresentação do filme no Festival de Curtas de São Paulo para a geografia retratada pelo filme, e esse realce também se nota na sinopse, que cita o centro de Belo Horizonte e o bairro Boa Vista. No trabalho há pelo menos dois planos em que a grandeza dos prédios da cidade é destacada como pano de fundo. O que lhe interessava nesse contraste “centro-periferia”?

ACS: Há somente um plano que mostra o centro de BH no horizonte. Em outro momento, na sequência da dança, temos uns inserts documentais de alguns ônibus pelo centro da cidade e logo depois a Viviana está em um típico buteco do baixo centro.

Na construção do personagem a Viviana é uma mulher que não sai muito da sua região, ela só vê a paisagem da cidade passar pela janela do ônibus. Isso acontece muito com pessoas que moram em uma região afastada do centro, e é o que a arquitetura do capital pretendia ao afastar as periferias, e hoje construindo o MOVE (sistema de transporte rápido por ônibus implantado pela prefeitura da capital mineira) para que o acesso ao centro não possa ser feito diretamente.

Para a minha personagem, ir em direção ao centro é também romper uma barreira, mas além disso eu pensei em um texto que li há um tempo que falava da utopia de personagens que terminam indo em direção ao mar, e para nós mineiros o horizonte de um bairro alto que se chama Boa Vista pode ter esse significado, porque é ir a lugar algum, mas ter os olhos te guiando para algum lugar. Ela apenas saiu de uma situação de opressão, mas virão outras, como as que acontecem na vida da Diane, da Daniela, da Cida e da Cristal… Tenho muitas leituras daquela cena, essa pensada na construção do filme, mas agora quando eu a vejo penso em outras representações.

 

CF: Você acha que Estado Itinerante se alia a uma certa tendência mundial, que teve seu auge recente com os irmãos Dardenne, de um realismo social? Quais foram as suas principais referências cinematográficas para a realização do filme?

ACS: Não sei se alia a esta tendência. Eu gosto muito deste realismo social dos irmãos Dardenne, tive inclusive Dois Dias, Uma Noite como referência. Não tentei ficar presa a um movimento, mas eu quero fazer filmes com questões sociais mesmo. Acredito que o Estado Itinerante não é um filme puramente realista, porque puxo o suspense e trabalho alguns signos ao invés do real, como a blusa roxa. Eu tive muitas referências, talvez não façam sentido escritas assim, mas houve filmes que são referências só por me encorajar com uma determinada cena. Para citar alguns nomes, John Cassavetes, Antonioni, Carlos Reichenbach, Agnes Varda, Pedro Costa, os Dardenne, Benoit Jacquot.

 

CF: Qual é a premissa e as motivações para realizar o seu próximo projeto, Logo Após?

ACS: O Logo Após tem como premissa os problemas cotidianos de mulheres da periferia que eu conheço. No roteiro envolvo questões como o desemprego, o espetáculo da mídia com os corpos e histórias de mulheres assassinadas e a maternidade, em um tema central que é o aborto. O que me motiva é utilizar a linguagem cinematográfica como instrumento para contribuir e ampliar o debate sobre o direito da mulher.

 

*O repórter viajou a convite do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

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