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21ª Mostra de Tiradentes: Sobre critérios, seleções e solidões

29/01/18 às 18:24 Atualizado em 13/10/19 as 22:58
21ª Mostra de Tiradentes: Sobre critérios, seleções e solidões

A 21ª Mostra de Tiradentes trouxe nas sessões, nos debates e nas conversas por corredores ares de menor tensão (se comparada ao 50º Festival de Brasília, por exemplo). Mas essa suposta atmosfera apaziguada me parece apontar na verdade para a noção forte e evidente de que algumas questões referentes a espaços institucionais como este não estão mais na condição de elaboração, nos convocando na verdade à ação, a movimentos pragmáticos e objetivos de alteração do jogo estrutural existente entre curadoria, crítica e realização. É exaustivo falar, ainda, dentro de espaços como o dessa mostra, muito mais sobre ausências do que presenças, muito mais sobre solidões do que gestos ativos de comunhão e aliança.

O alinhamento da Mostra de Tiradentes com dados estruturais anteriores precisa ser discutido. Em recente pesquisa da Ancine aponta-se que em 2017 apenas 2,1% das produções de cinema com algum tipo de aporte em editais haviam sido dirigidas por realizadores negros, sendo ainda menor, ou quase nulo, o número de filmes dirigidos por realizadoras negras. Parece haver um espelho entre estes dados e o recorte visto por mim nesta Mostra de Cinema de Tiradentes, algo que, a partir do discurso e dos relatos de pessoas próximas, se estende a boa parte das mostras de grande porte no Brasil.

A objetividade da urgência está posta. E tal urgência (termo tão utilizado nos dias de exibições, debates e conversas entre sessões) é tão facilmente detectável que qualquer transformação séria é mesmo mera questão de vontade política. Me parece motivo para grande constrangimento, por exemplo, que entre os 90 profissionais credenciados eu tenha me tornado, após o retorno de Juliano Gomes, a único pessoa negra na função de crítico entre os credenciados do festival. Ainda, foi latente a dificuldade de encontrar, tanto entre longas quanto entre curtas, um número consistente de filmes com pessoas negras, mulheres cis ou trans e homens trans chefiando equipes. Não é desejo deste texto incumbir o festival de uma responsabilidade de correção histórica que ultrapassa em muito as linhas do cinema, nem considerar que nos basta uma compensação estatística, mas é desejo sim deste texto considerar quais são os critérios de seleção e cobrar a necessidade de maior transparência na relação entre a instituição “Mostra de Cinema de Tiradentes” e o público, para que de fato possamos entender os processos que consideram alguns filmes mais relevantes que outros, algumas produções mais necessárias do que outras, alguns olhares mais legítimos do que outros.

Neste sentido, dentro deste campo tão restrito e limitado que persiste sendo o do texto e o da palavra, faço questão de formular algumas propostas possíveis, que aqui falarão por mim, mas que se abrem essencialmente a conversas com outras pessoas atentas às mesmas necessidades, vivenciando necessidades semelhantes, e também a outras mostras e grandes festivais de cinema, sendo a Mostra de Cinema de Tiradentes pauta neste caso por ter sido a experiência mais real que vivenciei, não necessariamente a única que carece de reflexões profundas.

Comecemos pela curadoria. Me parece justo que para entendermos o processo de seleção dos filmes a fundo, de modo a retirar este véu que por vezes parece cobrir os movimentos de seleção, é preciso torná-los mais públicos. Falamos aqui, afinal, de um evento organizado em boa parte com dinheiro público. A primeira sugestão é, portanto:

  • Divulgação não apenas da lista de filmes selecionados, mas também da lista de filmes inscritos. Dessa forma é possível rastrear melhor as escolhas feitas, e a partir daí elaborar impressões e questionamentos sobre certa ausência de tensões entre os filmes, sobre um desejo por refrações passageiras e confortáveis e sobre uma notória distância entre as seleções de curtas e longas (parece haver nos curtas uma tentativa um pouco maior de abarcar produções de naturezas distintas, enquanto nos longas há certo padrão de isolamento formal e temático, fator que requer números mais precisos para compreensão de suas razões), além desta ainda latente noção de que algumas produções e algumas discussões são colocadas numa tangencial inaceitável (há mesas sobre temas como realização negra, mas contam-se facilmente nos dedos de uma mão os filmes realizados por negros e negras exibidos em mostras e festivais, por exemplo). A partir desse registro mais rigoroso é possível driblar os escudos em que a curadoria parece por vezes se camuflar e pensar a própria verticalidade histórica que organiza esse processo.

A segunda urgência se alinha ao que Juliano Gomes (crítico da Revista Cinética) e Ana Julia Travia (diretora do curta Outras) disseram num debate organizado pela própria mostra sobre cinema de realizadoras negras no Brasil:

  • É preciso haver um mapeamento racial e de gênero através das fichas de inscrição da Mostra de Tiradentes e de todas as outras mostras e festivais. Que os setores de imprensa, convidados e convidadas, realizadores e realizadoras tenham condições práticas, desde o momento do cadastramento, de situar sua condição e seu lugar dentro dessa estrutura. Digo isso porque, e reiterando uma passagem anterior: nos últimos dias de Mostra tive a impressão de ser o único negro no papel de crítico, escrevendo sobre os filmes num processo por vezes muito solitário, enquanto o Júri Jovem da Mostra era inteiramente composto por estudantes brancos. Talvez fosse o caso de repensar as propostas de oficinas críticas realizadas para a Mostra de Tiradentes, considerando uma defasagem de posicionamento em comparação com eventos como o Janela Internacional de Cinema do Recife e o Panorama, na Bahia, iniciativas que mesmo rarefeitas têm incorporado outras formações de olhares e produzido boas tensões, sobretudo nos dois últimos anos. Ter essa impressão em números concretos serviria para repensar quem exatamente se inscreve nas oficinas, quais veículos habitam este espaço, quais os discursos e diálogos possíveis nessa configuração, tão comunitária para algumas pessoas e tão solitária para outras, sobretudo as que habitam fora do cânone masculino, hétero e branco do cinema instituído.

O terceiro e último ponto surge na verdade como uma observação curiosa quanto aos júris:

  • Parece cada vez mais haver uma dificuldade de apontar o que seriam exatamente produções de vanguarda, e quais os critérios estabelecidos para tanto. Nesta 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes o Júri Popular (sobretudo ao eleger A Retirada para um Coração Bruto como melhor curta) parece compor gesto mais provocativo e desafiador que as decisões dos próprios júris oficiais (tendo eleito Calma como melhor curta, por exemplo). Ficou ainda muito presente a sensação de que no campo dos curtas há mesmo uma busca um tanto estratégica por abarcar demandas específicas e pontuais (para o bem ou para o mal), enquanto no campo dos longas é que reside a face mais condizente com essa e tantas mostras (Ara Pyau, Inaudito, Rebento e Madrigal para um Poeta Vivo, filmes centrais em seus dias, não parecem ter força para mais de três meses).

Para encerrar, sobre este aparente distanciamento de outras produções que são a história do cinema em curso (relembro aqui a importância e necessidade de discussão permanente em torno do texto de abertura de Heitor Augusto à época da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes), convém considerar que aqueles que inflam as bolhas jamais serão os mesmos a estourá-las.

Promover desajustes é um movimento curatorial necessário desde que seja um movimento de coragem. Escolher filmes que acionam polêmicas e refrações previsíveis, alocar produções em determinados programas de exibição tomados por certa apatia propositiva (curtas como Febre, Pontos Corridos, A Barca do Sol, Todas as Casas Menos a Minha, Repulsa, A Brincadeira, Peito Vazio, O Quebra-Cabeça de Sara e Inconfissões, e sobretudo longas como quase todos os selecionados da Mostra Aurora, exceção feita a Imo) são sintomas de um lugar protegido e que precisa começar a ser ocupado por experiências de vida que tomem a permanência das discussões e a profundidade das provocações como questão de vida, de justiça histórica e estética, de abertura real para movimentos em curso.

Refletir, ponderar e atacar quando necessário são funções da crítica, que tende a ser tão mais mansa quanto mais alinhada empiricamente ao corpo das produções sobre as quais repousa seus olhos. É preciso rumar para uma crítica mais contundente e enfática, sendo composta por olhares mais agudos e formados por outras referências e impressões de mundo, carregados das urgências que reflitam a necessidade real de sobrevivência não apenas dos nossos corpos, mas, e eis a parte fundamental, de nossas ideias e conhecimentos. Não importa se tratando positiva ou negativamente das novas obras, mas sempre trazendo ao centro da discussão produções que existem às margens, num exercício de trocas e amadurecimentos necessário e frutífero para ambos os lados.

Apontar novos caminhos e perceber rupturas me parece a grande responsabilidade da composição dos júris. Mas há a necessidade de que cada vez mais essa falsa linha divisória entre arte e popular, entre cinema de autoria e cinema de público se embaralhe, revelando talvez nesse movimento alguma pane de valores e impressões que necessite maiores aberturas a outras experiências e acúmulos, ainda subrepresentados em todas as frentes, reconhecendo que neste momento o Brasil vive uma fase em que processos de vivência histórica não mais se desvencilham, no campo do cinema, de vivencias estéticas, e que a verdadeira vanguarda nasce e cresce aí (penso em O Dia de Jerusa, de Viviane Ferreira; em Kbela, de Yasmin Thayná; em Travessia, de Safira Moreira… Filmes que mereciam espaços de discussão e repercussão mais consistentes em mostras e festivais).

É preciso cada vez mais desproteger esses espaços, causar mesmo o constrangimento histórico sobre nosso próprio tempo. Nosso tempo que tanto requer, urgentemente, posturas mais contundentes na formulação daquilo que precisa ser visto e discutido; nosso tempo que reflete, em termos objetivos, a necessidade de incorporação de filmes que propiciem debates sobre representações e políticas da imagem que permaneçam enquanto conhecimento, não que se esvaziem enquanto polêmicas.

Querem que falemos mais dos filmes do que sobre quem faz os filmes? (Houve três momentos em debates na Mostra, um envolvendo o curta Febre, o segundo envolvendo Ara Pyau e o terceiro envolvendo o filme Nóis por Nóis, em que os apontamentos sobre as naturezas de produção dos filmes foram de certa forma tangenciados). Então considerem também se movimentar ao encontro de novos filmes, do reconhecimento de um movimento incontornável, entre produção, crítica e realização, mobilizado por grupos que produzem saberes na mesma medida em que são impedidos de discuti-los integralmente.

Querem mais conteúdo de outras fontes? Estabeleçam maior abertura para os coletivos audiovisuais que não circulam nestes espaços, para jornalistas com outras proposições de pautas, para projetos de extensão que aos montes existem nas faculdades discutindo cinema feminista, cinema negro, cinema trans, cinemas, afinal, de nosso próprio tempo.

É preciso superar esse cosplay de consciências ativas e olhares provocativos, porque tratamos aqui majoritariamente de discussões que já nascem esgotadas (novamente, tal qual os filmes, os debates em torno de obras como Ara Pyau, Febre e filmes de arquivo como Inconfissões e Todas as Casas Menos a Minha incorporam em si um tempo de durabilidade bastante limitado), isentas de uma relação mais duradoura com tensões propostas por quem ainda é exceção, por quem ainda é alienígena nos salões.

Se a intenção era causar desconfortos, nesta 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes fica apenas a dúvida sobre até quando a configuração dos espaços premiará a inércia e tratará questões urgentes como demanda passageira. É dessa sonolência estrutural que surge a apatia de um cinema inofensivo, incapaz de permanecer, com alguma dificuldade crônica de reconhecer a relação direta entre processos estéticos e históricos em curso. Capaz sim de reconhecer a existência das bolhas (se isto não é uma obrigação moral e histórica, não sei o que é), mas incapaz de destituí-la recompondo seu quadro e sua estrutura com muito mais vozes negras, de gays, de mulheres e homens trans, de mulheres cis, que existem, que fazem pesquisas, que escrevem sobre cinema, que pensam sobre seu próprio tempo nas mais variadas frentes, compondo de cineclubes a dossiês. Ao invés disso, fica a sensação de que, para além do teatro e da mise-en-scène, quando questionamentos frontais surgem e se repetem, os convidados de sempre entram na bolha, fecham a janelinha e o mundo lá fora que se resolva.

Faremos sim isso do lado de fora, em outros espaços, em novas frentes. Mas nesses tantos oásis do cinema brasileiro que são as mostras e festivais, é preciso dizer com convicção e tranquilidade: quem sempre esteve fora vai ganhar espaço, quem sempre esteve dentro vai ceder espaço. Há quem por essa afirmação seja chamado radical, há quem por essa afirmação seja chamado realista.

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